Livro de Horas- Miguel Torga




Aqui diante de mim,
eu, pecador, me confesso
de ser assim como sou.
Me confesso o bom e o mau
que vão ao leme da nau
nesta deriva em que vou.

Me confesso
possesso
das virtudes teologais,
que são três,

e dos pecados mortais,
que são sete,
quando a terra não repete
que são mais.

Me confesso
o dono das minhas horas
O dos facadas cegas e raivosas,
e o das ternuras lúcidas e mansas.

E de ser de qualquer modo
andanças
do mesmo todo.

Me confesso de ser charco
e luar de charco, à mistura.
De ser a corda do arco
que atira setas acima
e abaixo da minha altura.

Me confesso de ser tudo
que possa nascer em mim.
De ter raízes no chão
desta minha condição.
Me confesso de Abel e de Caim.

Me confesso de ser Homem.
De ser um anjo caído
do tal céu que Deus governa;
de ser um monstro saído
do buraco mais fundo da caverna.

Me confesso de ser eu.
Eu, tal e qual como vim
para dizer que sou eu
aqui, diante de mim!

Miguel Torga
 

Comentários

Eduardo Mesquita disse…
Este poema é uma perfeita ironia à confissão tradicional. A melhor forma de nos confessarmos será a nós próprios pois ninguem melhor que a nossa consciência para nos julgar. Só a nossa consciência pode reconhecer os nossos pecados que os outros julgarão que o não são e outros que o não são, os outros podem julgar que são.
Eduardo.