O espaço nos contos canónicos de Aquilino Ribeiro (Texto de apresentação de dissertação de mestrado) Nazaré Matos Universidade de Aveiro

O espaço nos contos canónicos  de Aquilino Ribeiro (Texto de apresentação de  dissertação de mestrado)

Nazaré Matos Universidade de Aveiro

Aquilino: «uma turbulenta paixão de contar». José Cardoso Pires

C’est lui [l’espace] qui impose son moule aux choses ou plutôt qui les réalise, qui permet de dépasser la zone du rêve et la contemplation dês virtualités; c’est grâce à lui que le monde accède à l’existence et à l’objectivation.

 Georges Matoré


Numa sociedade onde os juízos são aligeirados e a reflexão enfada, onde tudo se quer breve e intenso, os contos poderão ser um veículo para a renovação enriquecedora da leitura de Aquilino Ribeiro, pois, como ele diz em os avós dos nossos avós, "o passado está mais perto de nós do que supomos" (Ribeiro, 1990: 287). trindade Coelho, em 1897, distanciando-se de outros que consideram o conto um género menor, e aproximando-se curiosamente de autores nossos contemporâneos, como, por exemplo, Italo Calvino, antevia com grande clarividência:
O futuro parece-me que pertence ao conto, porque não há tempo de ler coisas grandes, - nem a 
inteligência, habituada cada vez mais a soluções prontas, a impressões diferentes e quase momemtâneas, nesta vida de febre que nos devora, não saberá amanhã, ainda que queira, fixar-se muito 
tempo no mesmo assunto, por ter muitos, além disso, em que fixar-se. (Coelho, 1998:282)
Há cerca de cem anos, pouco menos, Aquilino Ribeiro, jovem escritor, publicava o livro de contos Jardim das Tormentas, um conjunto de onze narrativas, redigido em Paris. Quando outros preconizavam um corte violento com o passado e um olhar apenas virado para o futuro, Aquilino voltou-se para as origens e logo nas suas primícias literárias a Beira se afirmou. Como salienta José Saramago, o Mestre de Soutosa foi "o primeiro e talvez único olhar sem ilusões lançado sobre o mundo rural português, na sua parcela beiroa" (Saramago, 1985:99). Após obras de grande importância para a literatura portuguesa, como Terras do demo e andam Faunos pelos Bosques, em 1935, cumprindo um arco temporal de vinte e dois anos desde a publicação do primeiro livro de contos, é dado ao prelo o segundo – Quando ao gavião Cai a pena. Duas colectâneas, que se complementam, ligadas pelo fio de uma vida, por uma trajectória associada à terra, que Aquilino nos deu a conhecer e que não se cansou de celebrar, em narrativas que apresentam entre si manifestos nexos temáticos, numa visitação de espaços diversos e de um tempo, onde os homens, as mulheres, os bichos e toda a envolvência que os rodeia bailam em cenários abundantes de sol, de odores e de volúpia. De facto, a capacidade de observação do real, secundada pela sua experiência pessoal, é vertida para os contos em momentos de rara beleza sensorial, em êxtases sinestésicos de uma terra cujos odores e intensidade cromática culminam no envolvimento erótico da natureza e dos bichos. O espaço, seja o edificado, o campesino, o de errância ou o urbano, adquire, assim, papel primordial na ficção contística, ultrapassando em muito a mera função de localização do narrado, tornando-se elemento essencial na construção diegética, estabelecendo articulações funcionais com as restantes categorias da narrativa e enriquecendo-se ao tornar-se gerador de ambientes, de formas de estar, sentir, de construção de mentalidades e de sonhos. Esclareça-se que, nos contos aquilinianos, o espaço vai para além dos limites da Serra, porém, na maior parte das narrativas, é privilegiado o universo rural, utilizando minuciosas descrições que se revestem de um papel vital, contribuindo o cenário, onde decorre a acção, não só para acrescentar verosimilhança, mas, e de uma forma decisiva, para o efeito total, tornando-se indispensável para a tensão e para o conflito, características inalienáveis do conto. Há quem aponte como dificuldade de leitura o estilo difícil de Aquilino. trata-se de uma argumentação pobre que o autor sempre refutou, defendendo, por exemplo, que "a literatura é feita com ideias e as ideias exprimem-se mediante palavras. Daí ser tão necessária a densidade discursiva. (…) Sustentar o contrário só por aberração mental, incapacidade ou desfrute dos simples" (Baptista-Bastos,1997:200-201). Esta perspectiva desde logo ressalta no engenho do escritor que, com mão de mestre, põe em palavras genuínas, num trabalho de exigente manipulação estética, as imagens, os cheiros, a sensualidade e o apelo fecundante da natureza. No centro das suas efabulações, detecta-se uma arguta análise dos lugares: da aldeia à cidade, da cidade do interior à cosmopolita. veja-se como, em "Inversão Sentimental", o contista se enleva com o encantamento e a plenitude de instantes proporcionados pela novidade da cidade de Paris, não deixando, todavia, de conferir importância a espaços abertos, como os jardins que descobre na grande urbe, geométricos, é certo, mas iluminados e coloridos pelo brilho e pela vitalidade destacada do sol. Repare-se, ainda, nos espaços paradisíacos de "triunfal" e "Quando ao gavião cai a pena", e espinhosos nos contos de recorte rural como em "À hora de vésperas" ou "O burro do senhor seu dono". Como se pode observar, o encantamento idílico perante a natureza é privilégio dos ociosos e perde o sentido quando as personagens são confrontadas com o lado negro da miséria. Atente-se na ligação de êxtase e enlevo que Luzia mantém com a natureza e com os animais, no conto "Quando ao gavião cai a pena", contrapondo-se à forma pragmática e rude como Isidro ou Cleto, em "À hora de vésperas", observam o espaço que calcorreiam diariamente em busca do sustento da sua família, sempre auxiliados pelos bichos. Nos contos beirãos, a dimensão telúrica evidenciada pela tríade natureza-homemanimais, sobressai em imagens fascinantes de cumplicidade, de interdependência, e de singular comunhão, traçadas entre os bichos e os donos, que se associam metonimicamente ao espaço, constituindo alguns dos momentos mais belos das narrativas. Os admiráveis lobos com as manhas e a prosápia características dos serranos, os burros, os cavalos e o cão Pilatas, companheiros de errância do homem, criam um efeito de realismo persuasivo e conferem maior dimensão aos caracteres ficcionais, quando mostrados em trânsito. O espaço físico ora agreste, ora bucólico cristaliza a imagem social do homem, que, tal como a natureza, tem dificuldade em domar racionalmente as pulsões vitais naturais na sua luta pela sobrevivência. Embora ficcional o espaço criado literariamente esboça uma concretização etno-social onde estão representados aspectos do quotidiano da comunidade, surpreendendo em flagrante o pragmatismo dos habitantes das terras do Demo, as suas fortunas e desditas, muito ao jeito da novela picaresca, sempre limitados pela rude adversidade das condições naturais. Aquilino faz, assim, valer um dos princípios da ficção naturalista, reconhecendo que "o habitante, naturalmente cainho pelas condições do meio, 
derivou para suspicaz, agreste, hostil, e assim perdurou" (Ribeiro, 1978:21-22). Assiste-se a um retrato da condição humana num combate marcado pela tensão, mas igualmente pela aceitação do ritmo da existência e pelo sentido humano da terra. Surpreendentemente, esta luta contra as agruras da natureza é suavizada e humanizada pelos animais, vítimas da crueldade e animalidade intrínseca que se manifesta nas acções dos donos, como acontece, a título de exemplo, em "António das Arábias e o seu cão Pilatas", no comportamento do protagonista em relação a Pilatas, ou ainda com o cavalo do Cleto que desperta a fúria do seu dono quando "deu com a carga no chão" (Ribeiro, 1985a:158). A brutalidade do trato é constrangedora e desperta a piedade do leitor:
O Cleto, diante do leite entornado, saltou nele às arrochadas. zurziu, zurziu até lhe doer o braço. 
Lascou-lhe o pau nos ossos. Mas o cavalo por mais esforços que fizesse, soltando roncos e escabu
jando, não conseguiu firmar-se nos curvilhões podriqueiros. O dono puxou-o ainda pela cabeçada, 
pelo rabo, pelas orelhas: ele deu bem provas que o não fazia por manha. (ibid.: 157) 
Esta temática constitui um dos ângulos mais interessantes da escrita aquiliniana e singulariza alguns dos contos, em que os bichos se manifestam de forma tocante numa ternura que não se consegue ver despontar no serrano de índole rude. Porém, se observarmos a relação que se mantém entre os animais e as mulheres, a afinidade é completamente diversa, o que clarifica um traço marcante no retrato da figura feminina – a capacidade de ser afectuosa e de o demonstrar. é o caso de Joana, no conto "A Pele do Bombo", a quem o cavalo lambe a mão, "balda velha que ganhara com os mimos que lhe dava, distinguindo-a em sua simpatia da manápula bruta do Cleto" (ibid.: 165). Na galeria de figuras dos contos aquilinianos, a mulher não deve ser linearmente reduzida a um tipo social, ela rompe essa barreira e ganha densidade: independente e reflexiva quando pertencente a uma classe social destacada, todavia, quando figura rústica, por vezes submissa, outras vezes decidida e agente da acção, mas com características que a individualizam. Há um traço singular que as une – a coragem – enunciado desde logo no conto "triunfal", mas também patente quer nas mulheres mais sofisticadas como Luzia, em confronto com a cobardia de tiago, quer nas mais simples como Rosária, que tudo faz para defender a sua família. Numa sociedade conservadora, repressiva e clericalizada onde a justiça é adversa e corrupta, onde a fazenda ataca os mais pobres, multiplicam-se as situações e as personagens que demonstram ser o amor e o afecto, sempre entrelaçados com o desejo, armas de denegação da moral instituída e agentes de harmonia entre as diferentes classes sociais, pois como Aquilino esclarece "a harpa eólica de Eros vibra em todos os tons por esses mundos além, tanto entre rústicos como civilizados" (Ribeiro, 1962:10). O homem do povo, ignorante e crente, entre as mãos de deus e do diabo, age de acordo com as suas necessidades elementares e não se interroga, respondendo à violência do quotidiano com artimanhas, sejam elas dirigidas ao divino, sejam ao vizinho com quem partilha a sua labuta diária. Para ele, a relação com Deus é tão comercial como as trocas realizadas na errância de terra em terra. No conto "António das Arábias e o seu cão Pilatas", o protagonista 
Sempre que se via em apuros prometia a anjos e santos este mundo e o outro. Ao Beato António 
(…) devia treze missas (…) Ao Senhor dos Aflitos devia missa cantada e sermão. A quem não devia 
cheta era a São Crispim, patrono dos sapateiros, não porque o ignorasse, mas porque não lhe 
merecia crédito algum o taumaturgo que não tinha o poder de lhe aviar a freguesia sem necessi
dade de (…) ele suar as estopinhas. (Ribeiro, 1985b:127-128) 
Neste ambiente serrano, a transcendência aproxima-se do humano e o divino é construído à imagem e semelhança do homem, como ilustra a idealização da imagem de Nossa Senhora, no conto homónimo. Não devemos esquecer o último conto de Jardim das Tormentas, "Revolução", que sintetiza as linhas orientadoras do espaço social presente nos contos anteriores e ilustra, numa linha utópica, a contestação de uma cultura judaico-cristã que não permite que o homem siga a lei natural e se guie por uma moral libertadora. Desta maneira, a visão crítica e sarcástica do contista traduz vínculos e tensões que o meio social consente. Aquilino, ao criar, por métodos realistas ou fantásticos, uma forte intimidade com o mundo serrano, torna a simplicidade rural atractiva e imbuída de vida autêntica, daí a fidelidade à cultura do povo, cujos mitos se enraízam na realidade física, aos seus costumes, aos seus tipos que expressam claramente a verdade, a autenticidade, o vigor. A análise do espaço vai para além do objectivo ou de implicação crítica, alargando-se a quadros míticos, cruzando o real e o irreal, tão ao gosto dos contos tradicionais, criando atmosferas encantatórias onde o maravilhoso, o fantástico e o sobrenatural emergem. Crenças seculares e casos exemplares regulam a comunidade, onde a transcendência convive com o humano numa constante interpenetração. Nos lugares bíblicos do conto "triunfal", na visão humanizada dos santos em "São Gonçalo casamenteiro", na representação de sátiros, passando pela transfiguração erótica de "A catedral de Córdova" e onírica, no conto "A reencarnação deliciosa", representa-se a íntima convivência entre dois mundos, ambos dominados por Eros.

Nos contos canónicos aquilinianos enredam-se, assim, espaços múltiplos e culturalmente significativos, que não se opõem antes se completam, e que apresentam diversas virtualidades, fazendo aflorar no leitor uma consciência mais segura, e decerto mais crítica, do tempo em que vivemos. E é este rasto perene, deixado por hinos de vigor estético, que abre os espaços a todos os que procuram horizontes mais vastos para a alma, porque a arte da palavra os guinda a uma dimensão superior. A perscrutação destas narrativas permite uma visão memorativa de um Portugal ancestral, que nos faculta algumas respostas para questões identitárias e ecológicas próprias do nosso tempo. Aquilino Ribeiro é um perspicaz contador de histórias. Nas duas obras estudadas, existem grandes peças contísticas como "triunfal" ou "Pele do bombo", contudo o escritor não se empenha no cumprimento canónico do género, porquanto, para ele, o importante é o acto de contar e a volúpia de escrever e, para nós, leitores de todos os tempos, o importante é que estas narrativas breves apresentam a essência da sua obra e da sua cosmovisão e firmam a nossa memória colectiva. No conto "Quando ao gavião cai a pena", o contista põe na boca de Luzia, um hino à vida bucólica, à inocência e beleza dos animais em contraste com a civilização, que, hoje mais do que nunca, faz todo o sentido e bem poderia constituir a argumentação de um dos textos publicitários que, diariamente, apelam para a humanização social e nos tentam sensibilizar para a vida saudável em contacto com a natureza:  
Compreende-se o apego dos poetas antigos à vida pastoril. Na criação há lá nada mais vivo, dia
bólico, dinâmico que um chibato? Repare como são mais interessantes que os meninos, embru
tecidos por séculos de civilização (…) que acima de tudo tem por efeito destruir no instinto, tenaz 
e sistematicamente, o que possui de belo e autónomo. (ibid.: 20)
Do legado contístico de Aquilino Ribeiro, depreende-se que foi um escritor que soube ler o espaço como um testemunho de vida para os leitores vindouros, o que me relembra as palavras de torga no prefácio de Bichos: "um conto que te agradou, tem algumas probabilidades de agradar aos teus netos" (torga, 2002:18).


BIBLIOGRAFIA
BAPtIStA-BAStOS (1997). "A última entrevista de Aquilino". Cadernos aquilinianos 5. viseu: CEAR. COELHO, trindade (1998). "O Conto". In REIS, Carlos. história Crítica da literatura portuguesa. vol.vI. Lisboa: verbo, 282-283. RIBEIRO, Aquilino (1962). andam Faunos pelos Bosques. Lisboa: Bertrand. (1978). aldeia: terra, gente e bichos. Lisboa: Bertrand. (1985a). Jardim das Tormentas. Lisboa: Bertrand. (1985b). Quando ao gavião Cai a pena. Lisboa: Bertrand. (1990). os avós dos nossos avós. Lisboa: Bertrand. SARAMAGO, José (1985). "Significado actual da obra de Aquilino". Colóquio/Letras 85. tORGA, Miguel (2002). Contos. Lisboa: D. Quixote.

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