Foi poeta, humorista, contista e dramaturgo português, um dos mais originais e polémicos do seu tempo. A sua obra mais popular, Canções, compreende um conjunto de poemas líricos que expressam o drama do sentir homoerótico, de modo subtil mas explícito, e foi um marco na lírica portuguesa pela sua novidade e ousadia, causando grande escândalo e ultraje entre os meios reaccionários da época. Amigo de Fernando Pessoa, que foi seu editor, defensor crítico e tradutor, conheceu igualmente outras figuras cimeiras da literatura portuguesa. Ostracizado em Portugal, radicou-se no Brasil em 1947.
António Botto nasceu na freguesia do concelho de Abrantes, Portugal, segundo filho de Francisco Thomaz Botto e primeiro de Maria Pires Agudo (o casal terá ainda mais dois filhos). O pai trabalhava como "marítimo" nas fragatas do Tejo. Em 1902 a família mudou-se para Lisboa, indo residir em Alfama, no nº 22 da Rua da Adiça. O jovem Botto cresceu no ambiente popular e típico desse bairro, que muito influenciaria a sua obra. Apenas completou - parece (quem o pode comprovar?) - o ensino primário. Começou a trabalhar cedo, como ajudante de livraria, tendo convivido com muitas das personalidades literárias da época.
António Botto tinha uma personalidade vincada. Descrevem-no como magro, de estatura média, um dandy, sempre bem vestido, de rosto oval, um ar lânguido, uma boca muito pequena de lábios finos, os olhos amendoados, estranhos, inquisitivos e irónicos (de onde por vezes irrompia uma expressão perturbadoramente maliciosa) que ele frequentemente ocultava sob a aba do chapéu inclinado sobre o rosto.
Altivo, jamais falava sobre as suas origens modestas, nem sobre os pais ou os dois irmãos. Mentia sobre a idade, dizendo que tinha nascido em 1900. Tinha muitos conhecidos, alguns amigos, mas muitos acabavam por se afastar dele, agastados com a sua língua viperina. Almada Negreiros, que o conhecia bem e dele fez um retrato, chegou a dizer que Botto era «uma serpente». L.P. Moitinho de Almeida escreveu que «António Botto era bom amigo quando era amigo, mas era um inimigo terrível dos seus inimigos». Segundo Eugénio de Andrade, que o conheceu em 1939, e que depois de uma boa impressão inicial acabaria por se desiludir com ele (considerava-o um poeta menor), Botto, vaidoso, egocêntrico e frívolo, primava pela «total ausência de escrúpulos, e uma linguagem cujo espírito oscilava entre a caserna e a Brasileira do Chiado», não se coibindo insinuar coisas pérfidas acerca de alguns confrades das letras.
Tinha um sentido de humor sardónico, incisivo, uma mente aguda, irreverente, sendo conversador brilhante e muito inteligente, características que muito divertiam e seduziam amigos como Fernando Pessoa ou Reinaldo Ferreira (de quem durante algum tempo foi colaborador administrativo no jornal Repórter X). Era amigo do seu amigo, mas tornava-se muito desagradável se sentia que alguém antipatizava com ele ou não o tratava com a admiração incondicional que ele julgava merecer. Este seu mau feitio criou-lhe um grande número de inimigos. Alguns dos seus contemporâneos consideravam-no frívolo, mercurial, mundano, inculto, intriguista, vingativo, mitómano, maldizente e, sobretudo, terrivelmente narcisista a ponto de ser megalómano.
Frequentava regularmente os bairros boémios de Lisboa e as docas marítimas onde buscava a companhia de marinheiros, tantas vezes tema dos seus poemas.
Apesar da homossexualidade, António Botto viveu com uma fiel, dedicada e amorosa companheira, Carminda da Conceição Silva Rodrigues, que nunca o abandonaria. ("O casamento convém a todo homem belo e decadente", como escreveu.)
Em 9 de Novembro de 1942 António Botto foi demitido do seu emprego na função pública (escriturário de primeira-classe do Arquivo Geral de Identificação) por:
«a) ter desacatado uma ordem verbal de transferência dada pelo primeiro oficial investido ao tempo em funções de director, por impedimento do efectivo;
b) não manter na repartição a devida compostura e aprumo, dirigindo galanteios e frases de sentido equívoco a um seu colega, denunciando tendências condenadas pela moral social;
c) fazer versos e recitá-los durante as horas regulamentares do funcionamento da repartição, prejudicando assim não só o rendimento dos serviços mas a sua própria disciplina interna.»
Ao ler o anúncio publicado no Diário do Governo, Botto ficou profundamente abalado e comentou com ironia: "Sou o único homossexual reconhecido no País..."
Para se sustentar passou a escrever artigos, colunas e crítica literária em jornais, entre os quais a revista Contemporânea (1915-1926) e a Revista municipal(1939-1973), e publicou vários livros, entre os quais "Os Contos de António Botto" e "O Livro das Crianças", uma colecção de sucesso de contos para crianças (que seria oficialmente aprovada como leitura escolar na Irlanda, sob o título The Children’s Book, traduzido por Alice Lawrence Oram). Mas tudo isto se revelou insuficiente. A sua saúde deteriou-se devido à sífilis que ele se recusava a tratar e o brilho da sua poesia começou a desvanecer-se. Era alvo de chacota quando ia a cafés, livrarias e teatros. Por fim, vendo que em Portugal não tinha condições de prover ao seu sustento, em 1947 decidiu rumar ao Brasil, na expectativa de melhor sorte. Para custear as despesas da viagem organizou, em Maio desse ano, recitais de poesia em Lisboa e no Porto, com elogios por parte de vários intelectuais e artistas, entre os quais Amália Rodrigues, João Villaret e o escritor Aquilino Ribeiro. A 17 de Agosto, dia do seu 50º aniversário, partiu finalmente para o Brasil com a sua companheira.
No Brasil, foi muito bem recebido pelos intelectuais e pelo público, conseguiu trabalho proveitoso junto de rádios e jornais, mas em breve a sua situação mudaria, o habitual padrão de fascínio e rejeição voltava a repetir-se também ali. Morou em São Paulo, cidade de que não gostou. Em Niterói, recorreu a um esquema fraudulento junto de uma empresa de construção, intitulando-se "engenheiro-arquitecto", e onde trabalhou durante pouco tempo. O assunto acabou em tribunal, tendo-lhe sido atribuída uma indemnização(!). Em 1951 mudou-se para o Rio de Janeiro. Sobrevivia dos modestos direitos de autor que ia recebendo, da escrita de artigos e colunas em jornais portugueses e brasileiros, participando em programas de rádio e organizando récitas de poesia em teatros, associações, clubes e, por fim, botequins, e quase sempre de empréstimos de amigos a quem nunca pagava.
A sua vida foi-se degradando de dia para dia e acabou por viver em aflitiva pobreza, em permanentes mudanças de hotéis e pensões (cada vez mais decrépitos) e casas ou apartamentos arrendados, em frequentes conflitos com senhorios e vizinhos (que muitas vezes o atacavam e atormentavam pela sua homossexualidade). A sua megalomania agravada pela sífilis crescia e não parava de contar histórias delirantes como a de uma visita que Mário de Andrade lhe teria feito em Lisboa ("Se não foi ele, então foi o Gide ou o Proust..."), de ser o maior poeta vivo ou de ser o dono de São Paulo. Em 1954, requereu na embaixada portuguesa o seu repatriamento, mas o pedido é-lhe negado, acabando por desistir por não ter meios para a viagem. Em 1956 ficou gravemente doente e foi hospitalizado por algum tempo.
Na noite de 4 de Março de 1959, ao atravessar a Avenida Copacabana, no Rio de Janeiro, foi atropelado por uma viatura do governo, sofrendo uma fractura do crânio e ficando em coma. Cerca das 17h00 de 16 de Março de 1959, no Hospital da Beneficência Portuguesa, Botto, expira, abraçado pela sua inconsolável companheira, que o chora perdidamente. Contava ele 61 anos.
Em 29 de Outubro de 1965 os seus restos mortais foram trasladados para Lisboa, por via aérea, mas só em 11 de Novembro de 1966 foram depositados num gavetão no Cemitério do Alto de São João, tendo assistido ao acto José Régio, Ferreira de Castro, David Mourão-Ferreira, Luís Amaro, Natália Correia, entre outros.
O seu espólio seria enviado do Brasil pela sua viúva Carminda Rodrigues a um parente, que o doou, em 1989, à Biblioteca Nacional, onde pode ser consultado.
"A vasta obra poética de Botto, em parte ainda dispersa ou não-recoligida, apesar de e também pelo muito que ele publicou, republicou, reorganizou em volumes dispersos ou suprimia de volumes anteriores, etc., poderá repartir-se em quatro fases: a juvenil, em que continua o tom da quadra dita popular, conjugando-o com aspectos da dicção simbolista que poetas como Correia de Oliveira, Augusto Gil, e sobretudo Lopes Vieira haviam introduzido nela; a simbolistico-esteticista, em que a juvenilidade tradicionalizante se literaliza dos requebros esteticísticos que marcaram, nos anos 20, muita poesia simultâneamente da tradição saudosista e modernista (é a das primeiras edições das Canções e breves plaquetes seguintes, em que todavia a personalidade do poeta já figura inteira em diversos poemas); a fase pessoal e original, nos anos 30, desde as edições de 1930-32 das Canções (em que ele ia incorporando selecções de colectâneas anteriores) até a Vida Que Te Dei e Os Sonetos (fase que é também a dos seus excepcionais contos infantis que tiveram realmente as edições estrangeiras que se julgava ser uma das mentiras megalomaníacas do poeta, da «novela dramática» António, e da peça Alfama); e a última fase, nos anos 40 e 50, até à morte que é a de uma longa e triste decadência, com poemas desvairadamente oportunistas, revisões desastrosas afectando nas reedições alguns dos melhores poemas anteriores [...]" em Líricas Portuguesas, de Jorge de Sena.
Sobre a poesia de António Botto escreveu Fernando Pessoa no prefácio do seu livro Motivos de Beleza, publicado em 1923:
"A elegância espontânea do seu pensamento, a dolência latente de sua emoção asseguram-lhe facilmente, conjugando-se, a mestria nesta espécie de lirismo [...] Distingue-se pela simplicidade perversa e pela preocupação estética destituída de preocupações. Foge da complicação com o mesmo ardor com que se esconde da intenção directa. É em verdade singular que se seja simples para dizer exactamente outra coisa, e se vá buscar as palavras mais naturais para por meio delas ter entendimentos secretos.
Certo é que o que António Botto escreve, em verso ou em prosa, há que ser lido sempre com a intenção posta em o que não está lá escrito."
O seu nome consta da lista de colaboradores da revista de cinema Movimento (1933-1934) bem como da Revista de turismo iniciada em 1916.
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´´ Canções é uma colectânea de poemas do autor português António Botto, que foi sendo editada e aumentada pelo próprio autor no período de 1921 a 1932. O carácter abertamente homossexual de alguns dos poemas causou enorme polémica nos meios conservadores e religiosos da época. Canções foi traduzido para inglês por Fernando Pessoa.
Em artigo publicado no nº 3 da revista "Contemporânea" em Julho de 1922 a propósito de Canções, Fernando Pessoa, numa defesa indirecta e algo "envergonhada", teoriza sobre o ideal esteta relacionando-o com a Grécia antiga e defende que António Botto é o único esteta de Portugal: "Artistas tem havido muitos em Portugal; estetas só o autor das Canções".
Álvaro de Campos, um dos heterónimos de Fernando Pessoa, arrasa no nº. 4 da "Contemporânea, em Outubro de 1922, os argumentos de Pessoa (!) por demasiado rebuscados e desnecessários e defende que Botto é integralmente imoral e indecente, mas é nisso que está a sua qualidade: "O Botto tem isto de forte e de firme: é que não dá desculpas. E eu acho, e deverei talvez sempre achar, que não dar desculpas é melhor que ter razão".
No mesmo nº. 4 da revista "Contemporânea" Álvaro Maia, um jornalista, assina um artigo em resposta a Fernando Pessoa onde se indigna por um ilustre intelectual como Pessoa se associar a tão repugnante, indecente e escandolosa e putrescente obra.
Raul Leal, descontente com a ausência de resposta de Fernando Pessoa, publica em 1923 o opúsculo "Sodoma Divinizada" na editora Olissipo (também de Fernando Pessoa) onde ataca ferozmente Álvaro Maia e defende Botto teorizando acerca da divinização da imoralidade e do pecado que assim passaria a moral e aceitável: "Sodoma não foi condenada às chamas por ser viciosa mas por não ser misticamente viciosa. (…) Ora, sem dúvida, António Botto não satisfaz o meu ideal do luxurioso e pederasta místico; mas isso depende principalmente do meio em que vivemos, meio perverso em que se não sente Deus que assim se mantém alheado de nós. (…) Criem-se templos de Luxúria em que esta tome uma feição litúrgica e só então surgirá o verdadeiro sensualismo místico que há-de exprimir a divinização do Mundo, a divinização de Sodoma estabelecida exaltadamente pelo Verbo e pelo Espírito Santo de Deus!".
A tempestade desencadeada por Canções e por "Sodoma Divinizada", bem como por outras obras e artigos que apareciam nas livrarias e jornais da época de que importa destacar "Decadência" de Judite Teixeira, foi tremenda, e a Federação Académica de Lisboa, tendo como porta-voz Pedro Teotónio Pereira, denuncia no jornal "A Época", em Fevereiro de 1923, a "vergonhosíssima desmoralização, que sob os mais repugnantes aspectos, alastra constantemente".
A Federação Académica de Lisboa estaria com grande probabilidade apenas a servir de face pública das vontades do poder instituído da época porque pouco depois, em Março, é ordenada pelo Governo Civil de Lisboa a apreensão dos já mencionados livros de Botto, Raul Leal e Judite Teixeira.
Fernando Pessoa e Álvaro de Campos protestam contra o ataque dos estudantes a Raul Leal: "Ó meninos: estudem, divirtam-se e calem-se. (…) Divirtam-se com mulheres, se gostam de mulheres; divirtam-se de outra maneira, se preferem outra. Tudo está certo, porque não passa do corpo de quem se diverte. Mas quanto ao resto, calem-se. Calem-se o mais silenciosamente possível". Mas com pouco efeito. O impulso censório ganha força com o regime do Estado Novo e a revista "Ordem Nova" declara-se "antimoderna, antiliberal, antidemocrática, antibolchevista e antiburguesa; contra-revolucionária; reaccionária; católica, apostólica e romana; monárquica; intolerante e intransigente; insolidária com escritores, jornalistas e quaisquer profissionais das letras, das artes e da informação". António Botto acaba por se ver forçado a emigrar para o Brasil e Raul Leal será vítima de espancamentos e deixará de escrever para jornais durante 23 anos.``
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