Ela havia completado oitenta anos e jamais frequentara uma escola. Não sabia ler, mas sabia falar. E como falava! Falava errado, mas falava.
Um dia, num consultório, enquanto esperava sua vez para ser atendida, começou a conversar com a mulher que estava sentada ao seu lado.
Durante uma hora, o tempo que durou sua espera, conversou com ela. Sentiu que era ouvida com carinho e isso a fez falar mais ainda.
Ao se despedirem, aquela estranha mulher lhe disse:
- Vovó, gostei muito da senhora e, para que sempre se lembre de mim, vou lhe dar este livro de presente.
- Um livru, minha fia? Num creditu. Em oitenta ano di vida é o primeru livru qui ganhu. Muitu brigada, minha fia. É sobri u quê?
- É história de vida. Da minha vida.
- Ocê mesma qui iscreveu?
- Sim.
- Intão devi di sê muitu bão.
- Sim, é muito bom. A senhora sabe ler, vovó?
- Num sei não, fia, mais num tem pobrema, eu peçu pra minha neta lê pra mim.
- Ela gosta de ler?
- Pra falá a verdadi, num gosta muitu não. Quando as professora manda lê argum livru, ela fica muitu revortada i diz qui us livru é tudu ruim.
- Então diga-lhe que este livro é diferente e que foi a própria escritora quem pediu pra ela ler. Olha, vou escrever uma mensagem para a senhora na primeira página e um bilhetinho para sua neta, está bem?
- Tá bem, mia fia.
Pegou o livro e, rapidamente, escreveu algumas palavras na primeira página e depois o bilhete.
- Aqui está, vovó.
- Muitu brigada, mia fia. Vai cum Deus. Qui Deus ti bençoe.
Voltou feliz para casa. Pela primeira vez, em oitenta anos, sentiu-se muito importante. Entrou alegre em casa. O problema de pressão que havia sentido desaparecera. Parecia outra.
- Marialice, vem cá minha fia. Vem vê o qui a vó ganhô.
- O que, vó?
- Um livru.
- Ih, vó, sai fora. Livro é a maior chatice.
- Não, minha fia, essi livru é diferenti. A muié qui mi deu, falô que foi ela mesma qui iscreveu.
- Pior ainda vó, quando uma escritora sai por aí dando livro pra analfabeto é porque o livro não vale nada.
- Não, minha fia, quandu eu cunversava ca muié eu sintia uma coisa diferenti. Ela era muitu boa di prosa.
- Ih, vó, não vem não. Conheço bem essa gente.
- Ah, minha fia, mais eu quiria tantu qui ocê lessi pra mim iscutá essa istória. Oia, ela mando essi bietinhu procê. Lê e vê u qui ta iscritu.
A neta, curiosa, pegou o bilhetinho e leu: “Querida neta, poderia ler esse livro para sua vovó? Talvez seja o único que ela lerá nesta vida. Um beijo. A autora.”
De repente, sentiu um estranho arrepio percorrer seu corpo. Sentou-se no sofá, olhou para a avó com um olhar carinhoso e disse:
- Está bem, vovó, sente-se aqui que vou ler para a senhora.
- Oia, minha fia, ela falô qui iscreveu uma coisa pra mim na primêra foia. Lê pra vê u qui qui é.
A neta abriu o livro na primeira página e leu: “Vovó, você é muito especial! Quando partir deste mundo encontrará um lugar de honra à sua espera, pois Deus sempre gostou de você.”
Pela segunda vez a neta sentiu um estranho arrepio percorrer seu corpo. Fechou o livro para examinar com atenção aquela capa onde um grande olho parecia observá-la.
Leu em voz alta o título do livro: “PEDAÇOS DE UM DIÁRIO”
Ficou curiosa. Por que “Pedaços de um Diário”?
A avó que a observava em silêncio interrompeu seus pensamentos.
- Fia, fia, pur que ocê tá tão pensativa? Pareci qui ocê tá tão longi... Pur que ocê tá oianu só nessa foia?
- Não é nada, vó, não é nada. Já vou ler pra senhora.
E começou a leitura. As letras eram bem grandes e a leitura fácil. A linguagem era forte e, a cada capítulo, sentia-se emocionar. Sabia ler bem e sua entonação de voz era perfeita. De repente, sentindo-se a própria personagem, começou a chorar baixinho. Olhou para a avó e viu que ela também chorava. Nunca havia sentido aquela sensação.
A avó olhava encantada para a neta. Jamais poderia imaginar que ela lesse tão bem! Sentiu-se importante por ser avó daquela menina!
A neta, pela primeira vez, sentiu-se como se estivesse caminhando por um mundo estranho e, ao mesmo tempo, tão familiar. Ao fechar o livro olhou novamente para o olho estampado naquela capa e disse:
- Gostei, vó! De hoje em diante quero ler todos os livros dessa escritora.
Sua vó, a partir daí, todos os dias, antes de dormir, pegava aquele livro e o folheava. A mensagem que a escritora lhe escrevera, não saia de sua mente. Olhava para aquela capa e sentia como se conversasse com ela.
Uma noite, chamou a neta e disse toda animada:
- Marialice, minha fia, aprendi a lê!
- Não acredito, vó, só vendo.
Então, com voz suave, a vó começou a ler. Perplexa a neta pensou: “Milagre!”
E assim, “Pedaços de um Diário”, esteve ao lado da avó até o fim de sua vida, realizando o que a neta chamou de:
O MILAGRE DO LIVRO!
**Conto "O Milagre do Livro"
Primeira Antologia Ponto & Vírgula - Pág. 65
Editora: PerSe/2012
Coordenação: Irene Coimbra
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