FICÇÕES DA VIDA (*) Ely Vieitez Lisboa


Muitas vezes a Vida me parece uma autora genial. Suas ficções são mais ricas que as nossas, pretensos escritores que tentam passar para o papel fatos pitorescos, episódios. E o pior: ficção é a realidade reelaborada. E quando colocada no papel, de início, só o autor e Deus sabem os limites do recriado e do verídico. Depois de algum tempo, só Deus.
Por que estou abordando tais temáticas? Sem entender bem (pois detesto lembrar de coisas passadas, não porque meu passado foi ruim, muito pelo contrário, mas sigo a filosofia sábia de Machado de Assis: Enterre seu passado em uma tumba e coloque o epitáfio: DESCANSE EM PAZ). Muito simples: para que relembrar, ficar vivendo cenas passadas? Esse tempo não mais existe. Preocupe-se com o presente e com o futuro. Assim, terá uma chance real de ser mais feliz. 
O episódio verídico me veio à cabeça como uma mosca teimosa. Comecei a dissecá-lo, com uma só finalidade: analisar o meu modo de agir na época. Espero que nunca mais passe pelo mesmo problema. E se isto acontecer, não sei bem se agiria da mesma forma. 
Estava eu em uma missa, quando a bela moça, que eu conhecia só de vista, chegou perto de mim e fez o pedido: Posso ir à sua casa conversar com a senhora? Eu argumentei: Não podemos nos falar aqui, no final da celebração? Ela disse que não; o assunto era longo... Apesar de achar tudo muito estranho, aceitei recebe-la. Conforme o combinado, às dezanove horas ela chegava ao meu prédio e subiu ao apartamento onde eu residia.
Por Deus! Ela ficou quatro horas me contando sua vida, a história mais terrível que eu já ouvira. No final, eu ainda sem saber como consola-la, ela me disse com firmeza: Então, a senhora entende. Por tudo isso, daqui dois meses, no dia tal, às onze horas da noite, vou suicidar, pular do sétimo andar do meu prédio! Fiquei olhando para ela, tão jovem e tão bonita, sem saber o que dizer. Acho que disse algo tolo, como “vou rezar para que você mudar de ideia”; beijei-a na face. Não é preciso dizer que não consegui dormir naquela noite...
Aí aconteceu o pior: comecei a me sentir na obrigação de fazer algo para evitar a tragédia. Mas como?! Naquela época, eu dava aulas nos três períodos, de manhã e à tarde, no Estado e à noite, na Faculdade. Mesmo assim, em todos meus minutos de folga, eu lhe telefonava, dava conselhos, mostrava-lhe que era tolice o que ela pretendia fazer. Comentava com amigos que diziam coisas várias: Quem avisa, não suicida, ou é tolice dela, não acredite... Mas o demónio da dúvida me atacava. E se fizer o prometido?!
Foram dois meses de tortura. Experimentei tudo, várias visitas a ela, centro espírita, passes, conversa com psicólogos, psiquiatras. Ninguém me dava certeza de como evitar a tragédia anunciada. E aí, a data fatídica chegou. Às vinte e duas horas toquei o telefone e principiei a falar com ela. Não sei se era verdade, mas ela começou dizendo que já fizera uma experiência, com uma cadeira, para ver qual era o modo mais simples de saltar...
Continuamos a conversar, longamente, sobre vários assuntos. À meia-noite e dez, eu lhe disse: o dia que você marcou para o suicídio já passou. Ela, demonstrando surpresa com o horário, retrucou: É mesmo! O tempo passou tão rápido! Usando a lógica, perguntei-lhe: Então você não pensa mais em se matar, não é? Ela pareceu convencida com meu raciocínio, disse qualquer coisa que eu estava certa, despediu-se e desligou o telefone. 
No dia seguinte fiz uma limpeza no sótão, parei de pensar naqueles dois meses trevosos e minha heroína sumiu. Ouvi dizer que se mudara de Ribeirão Preto. Dei graças a Deus!


Ely Vieitez Lisboa




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