É V. Ex.ª a única entidade, hoje existente neste país, cuja autoridade pode ser considerada legítima. Foi V. Ex.ª eleito como homem, o que é definido e concreto; não como constituição, o que é indefinido e abstracto. De V. Ex.ª depende, de direito e, parece, de facto, tudo quanto, de governo ou governação, neste país exista. Perante V. Ex.ª pois formulo este protesto, que é dirigido contra a maneira como, nestes últimos tempos, tem sido encaminhada — por descaminho — a direcção governativa da vida pública.
Dirijo-me a V. Ex.ª. na minha qualidade de cidadão português, que V. Ex.ª também é. Não me sirvo para fazê-lo dos títulos, para o caso ou estranhos ou desnecessários, de ser eu o poeta que escreveu porque escreveu o livro nacionalista Mensagem ou o templário que escreveu, por ser seu dever escrevê-lo, o artigo «Associações Secretas», publicado no Diário de Lisboa. V. Ex.ª nada tem que ver com poetas, nem, salvo numa concepção especial, cuja natureza, porque V. Ex.ª sabe, não indico, com templários ou outros quaisquer membros das Ordens Secretas.
Entro imediatamente no assunto.
Estabelecida a Ditadura em Portugal, percorreu ela, até hoje, três fases. A primeira foi a de simples defesa própria e de expectativa; vai de 28 de Maio de 1926 ao advento, no Ministério das Finanças, em 27 de Abril de 1928, do Prof. Oliveira Salazar. A segunda foi a da consolidação da Ditado dura, obtida pela acção enérgica, paciente e cuidadosa que o Prof. Salazar exerceu no cargo em que foi investido. Essa acção, caracterizada ostensivamente pelo equilíbrio dos orçamentos e por outros efeitos análogos ou similares (cujas contrapartidas, económicas, sociais ou morais, não pretendo discutir por não ser perito em matéria económica, e por ser complexo e confuso tudo quanto é social ou moral), deveu em grande parte o seu êxito a um fenómeno alheio ao assunto — ao voluntário e agradável apagamento, que seja por o que parecia ser trabalho e modéstia, do seu principal executor.
Morto, porém, el-rei D. Manuel, e liberto portanto o Prof. Salazar de qualquer obscuro compromisso monárquico, tomado porventura somente para consigo mesmo, entrámos na terceira fase da Ditadura, que abre com o discurso da Sala do Risco e só Deus sabe onde e como acabará.
A primeira fase da Ditadura era, por assim dizer, doutrinalmente negativa. A Ditadura era só ditadura: era essencialmente uma ausência de regime, porventura necessária, uma suspensão da vida constitucional, um interregno, um estado de sítio civil. Na segunda fase, não havendo ainda mudança doutrinal, isto é, não havendo ainda uma fórmula politica que alguns pretendessem impor, havia já testado duas coisas positivas — um método e um homem, uma aritmética e um aritmetizador. Do método, pois não cuido, pois não cuido do que não entendo. Do homem, como era então, não tenho que cuidar: estava consubstanciado com o método. O que da pública, importa é a terceira fase da Ditadura, pela simples razão que é a em que estamos, e só o presente é que está aqui.
Essa terceira fase da Ditadura, Senhor Presidente, começou por afirmar-se no integralismo monárquico disfarçado de Estado Novo, continuou afirmando-se no integralismo, já menos disfarçado, do chamado Estado Corporativo, e acabou com afundar-se nos últimos arrancos do Prof. Salazar, e nomeadamente na segunda parte do Prefácio aos seus Discursos, por integralmente integral, isto é, francamente inimigo de duas coisas — da dignidade do Homem e da liberdade do Espírito.
Com efeito, na citada segunda parte do citado Prefácio, parte essa de que o principal e essencial político foi dito ou lido numa sessão pública, da entrega de Prémios, no Secretariado de Propaganda Nacional, diz-se aos escritores que têm eles que obedecer a certas directrizes. Até aqui a Ditadura não tinha tido o impudor de, renegando toda verdadeira política do espírito — isto é, o pôr o espírito acima da política —, vir intimar quem pensa a que pense pela cabeça do Estado, que a não tem, ou de vir intimar a quem trabalha a que trabalhe livremente como lhe mandam.
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