A ESPOSA (IM)TOLERANTE- Ana Barbara Santo Antonio


Levanto-me todos os dias com as mesmas palavras atravessadas na garganta, um azedume de maus fígados adquiridos, uma melancolia arroxeada a maquilhar-me o rosto, os lábios lívidos de beijos amaldiçoados pela tristeza da vida.
O corpo, ah o corpo já quase não o sinto, de tanto que o sinto tolher-me os movimentos agitados por um sono intranquilo de dívidas para com a alma. A pele atravessada de mágoas e desilusões. 
Os dias que instigam os sonhos de indiferença fingida. As certezas incertas de um sexto sentido legitimo e de plena propriedade, a trama tolerante do entendimento racional do saber perdoar e fechar os olhos a tanta ingratidão e falsas promessas de mudança e desatino.
Choros gritos abandonos desesperos.
Por que desatino é saber e sentir o peso da mentira sobre todas as coisas e desculpar desvios e atitudes comportamentais, pretextos e pressentimentos mal arrumados na gaveta da discórdia e da tolerância. 
As noites mal dormidas, os jantares arrefecidos, os fins de semana esquecidos, as comemorações de lágrimas, o porão das injúrias escancarado ao medo do abandono, o sótão das lembranças manchado de angústias e dor, a névoa das injustiças a pairar de indiferença.
As mãos sempre prontas a cumprir as obrigações de uma vida a dois.
A trémula aventura da persistência por um casamento desgastado e ultrajado pelo limite da intolerância.
E a família, onde arrumar a família no meio disto tudo, como acalentar discussões e silêncios mordidos a seco e deixar o tempo curar tudo.
E o esforçado sorriso a compor o ramalhete da tolerante vida conformada.
No cabaz das metáforas restam no fundo cansaços de um leito desfeito no legitimo desertar da imagem que fica da possível traição onde as palavras enrolam como vagas a cair dos olhos humedecidos num areal de sentidos fazendo com que a realidade emudecida seja objector de consciência perante a factual idade das coisas intimas que nos são cúmplices de sentimentos.
Quase um misticismo proibido à volta da liberdade do sexo fora do casamento, e todas as premissas inerentes e pulsantes até se ouvir o grito de BASTA.
A tal "volúpia envolta em esperas e pedaços de coisa nenhuma" e ainda o profundo e pesado silêncio de preocupações e consumições mil vezes repetidas.
Se a hora há-de chegar, que ela chegue rápido, sim, a hora do livramento, a rendição ao pranto solitário de toda a tristeza calada.
Volto à cama desfeita sem ninguém se ter deitado nela, ao almoço esquecido, à tarde remoída de desconfianças, ao jantar ignorado, e a noite que nunca mais finda e tão cedo é como tarde se faz de perdoar a claridade que ousa fazer cintilar as lágrimas arrefecidas sobre as mãos calejadas de amargura.
Tantas vezes invocada a senhora do alívio, tantas preces à senhora das angústias. 
"Por longos dias longos anos fui silêncio."
A vida feita de esperas.

Ana Barbara Santo Antonio


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