Eu era um pouco como aqueles realizadores brasileiros
tinha uma câmara na mão e a cabeça cheia de ideias
mas ainda assim
não tinha a certeza do que estava a dizer
nem do porque estava a dizer tudo aquilo.
Mas não me importava
eu sentia-me também um bocado dadaísta
não queria as coisas certas e razoáveis
senão, naturais, assim, na hora mesma
e um bocado reivindicativas, do meu jeito.
À sorte e ao acaso deixava a minha vida passar
Man Ray já foi objecto dos meus delírios
ele sabe, já fui visita-lo em Montparnasse
duas vezes ou quatro.
Comecei a deixar marcas nas paredes
naquela pequena cidade cosmopolita e marinheira
onde tinha abaixado a vela, fundeado âncora
deitando a sorte na ilha, numa das nove
sem saber se era a mais certa.
Comecei a assistir cinema taiwanês no meio do oceano.
Comecei a sentir pena das baleias.
Comecei a me desiludir daquilo que queria que fosse meu futuro.
Comecei a querer mudar aquilo que acabava de começar.
Comecei a ver cinema novo de novo
e voltei a lembrar daquele baiano que conheci em Paris.
Lembrei do cheiro da sua pele.
Lembrei da forma do seu corpo deitado na cama.
Lembrei da sua vulnerabilidade frente ao mundo
e da sua capacidade de seguir sempre para frente
saltando barreiras
saltando até aquelas que ele
mesmo construiu com seus actos irracionais.
Nalgum momento este círculo que a vida é
vai me reencontrar com ele
eu sei.
Porque sigo ficando excitada quando penso nele
sigo ficando molhada
quando lembro das noites de verão
dele nu ao meu lado
quente como sangue tropical
duro como banana de pedra basáltica
e a pele macia, toda morena
como cantava Vinicius.
Lembrei da historia do seu patinete
naquele festival de reggae
dos gelados na praia
da geladeira
do passaporte
da bicicleta
da rapariga de tatuagens
acusadora.
Lembrei daquele louco verão ao seu lado
de nós naquele prédio do bairro cigano
no meio da cidade
do proprietário que cantava os Beatles na rua
com uma guitarra velha e um alto-falante
que empurrava atras dele
num carrinho meio tuning
como aqueles das velinhas
que fazem compras no mercado
e com a camisa cheia de manchas de tomate
o gajo ganhador de xadrez nacional
num pais qualquer dos Balcãs
e possuidor de várias vivendas
que alugava sem contrato
a imigrantes sem papéis
vindos de qualquer pais do mundo.
E voltei a querer fazer daquelas histórias um filme,
contar um pedaço do meu passado para entender o meu presente,
para visibilizar todas as mulheres que sofreram como eu sofri,
como àquela realizadora que contou como no verão do 1993
perdeu os seus pais por causa do VIH.
Voltei a querer fazer cinema
e decidi que continuaria a escrever
deixaria a baleia, o golfinho e a tartaruga.
Deixaria o cagarro e o garajau
e também a gaivota com o seu canto estridente,
e faria cinema,
porque isso é o que eu queria fazer
contar as minhas historias,
e não as dos outros.
Aqueles,
que dizem ser e não são,
que dizem querer e não querem,
que dizem azul e só veem verde.
Senti pena da baleia.
© Mar Navarro Llombart
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