João, com oito anos de idade, e com aspecto franzino, era um desses miúdos em que se podia adivinhar que vivia os tempos em que uma boa refeição seria metade de uma sardinha, ou metade de um ovo estrelado ou então um carolo de pão com manteiga.
Naquele dia caminhava bem cedo com uma cana da India, que ”colhera” num dia de coragem por entre o arame farpado, no quintal do Zé Teixeira, bem perto onde passava a linha do comboio por detrás da rua do Loreto. Não precisava de carreto nem argolas para os três metros de sediela que pendurara numa das pontas da cana e um anzol que lhe dera um dos amigos que o pai comprara no Tio João do Cazão.
Ia feliz porque já não precisava da vara de amieiro que sempre usara antes.
Desceu o poulo, o caminho da pedreira e passou por entre o montão de latas, o lugar que o latoeiro do Loreto usava para lixeira e rumou até aos negrilhos. Desceu uma rampa muito íngreme perto da quinta do Guilherme que dava acesso aos tanques, o lugar onde sua mãe lavava a roupa e onde a água nunca faltava. Sorriu um pouco ao olhar para traz para o topo da ladeira junto aos negrilhos, a imaginar a mãe com a bacia da roupa á cabeça com uma rodilha por baixo para se proteger. Ficava admirado como ela fazia aquele caminho, ladeira acima sem nunca segurar a grande bacia com as mãos e como ela se mantinha equilibrada mesmo com o peso proveniente da roupa ainda molhada.
Seguiu a sua caminhada apenas com o cuidado de manter a cana sempre na vertical para a sediela não se desenroscar com o anzol preso na outra extremidade. Passou pela quinta do Zé que trabalhava na Chiquinha das mobílias e desceu até ao rio junto á ponte perto da capela do Sr. dos Aflitos.
João descalçou as sandálias de plástico que a mãe lhe comprara no comércio do Antoninho Oliveira, e com uma meia na mão entrou numa zona baixa do rio para apanhar o casquete. Ia levantando as pedras uma a uma, muitas vezes sem sorte porque alguém antes dele já teria andado por ali. Ia olhando para as vacas a pastar no lameiro do António Dias do outro lado do rio. Em dez minutos conseguiu arranjar casquete suficiente para a sua pescaria, que já cobria bem o fundo na meia, que ele ia molhando para que o casquete não secasse.
Saiu da água , calçou as sandálias e olhou para a ponte. Agora tinha que atravessar por debaixo da ponte, um exercício arriscado e perigoso, onde dois parapeitos laterais na ponte a alturas diferentes, permitiam que os miúdos com certa audácia, usando o superior para as mãos e o inferior para os pés, que a travessia se fizesse com sucesso, sem caírem ás águas profundas mesmo por baixo.
Missão cumprida, agora o João só tinha que ir para o seu lugar do costume em frente à quinta do Periscas, numa reentrância no rio por entre dois freixos onde as espadanas altas, serviam de esconderijo para que os guardas rios, sempre a espreitarem desde o cimo da ponte, não o pudessem ver. Mais que a travessia da ponte era esse o grande perigo a que se expunha. Mas sorriu porque viu quase à tona da água dois grandes cardumes de escalos e bogas que esperavam por si. Não precisava de boia para pescar, pois a água era sempre límpida e cristalina.
Só teria que estar silencioso, pois os peixes sairiam um a um, que colocaria num ramo fino de amieiro por entre as guelras e a boca.
Esse ramo com escalos e bogas, seria o seu troféu no caminho de volta para casa que ele nunca deixava de exibir.
Esse foi mais um dia feliz da infância de um miúdo que na altura ainda molhava os pés na águas cristalina do rio Fervença.
Eduardo Mesquita
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