Sociedade Silvestrina para o séc. XIX- Diamantino Bártolo



Desde a sua chegada ao Brasil que Silvestre Pinheiro Ferreira (1769-1846) encontraria várias dificuldades, designadamente ao nível da sua plena integração na sociedade, onde, de resto, passou privações de vária ordem, pese, embora, a auréola de intelectual e político muito competente, o que, suscitaria a intriga e a animosidade por parte de setores que, certamente, por inveja, não desejavam que ele viesse a beneficiar de um estatuto compatível com os seus vastos conhecimentos interdisciplinares.
Em todo o caso: o homem, o filósofo, o jurisconsulto, dotado de grandes qualidades, não se deixou intimidar, exercendo, então, a atividade de jornalista como colaborador de um periódico científico denominado “O Patriota” que cobria vários domínios, desde o literário ao político, passando pelo mercantil, sendo publicado durante dois anos consecutivos – 1813-14.
Por esta altura, Silvestre Ferreira estaria desempregado, mas foi também em 1813 que pela primeira vez se iniciou no Brasil a lecionação de aulas de Filosofia, a partir da sua própria obra “Prelecções Filosóficas”, cuja notícia deste curso seria anunciada numa outra publicação intitulada “Gazeta do Rio de Janeiro”, em 14 de Abril de 1813. (cf. VARNHAGEN, 1975:224).
Admite-se que a colaboração de Pinheiro Ferreira no periódico “O Patriota” não seja assim tão inocente, porque um dos primeiros atos de D. João VI, quando se instalou no Rio de Janeiro, foi a criação da Impressão Régia, por decreto de 13 de Maio de 1808, que se constituía como uma delegação da Imprensa Nacional. Inicialmente, tinha por objetivo imprimir toda a documentação, legislação e assuntos diplomáticos, bem como obras diversas.
Acontece que para a administração da Imprensa Régia, no Rio de Janeiro, Silvestre Pinheiro Ferreira viria a ser um dos diretores: «Para administrá-la criou-se uma junta directora, composta do desembargador José Bernardes de Castro (...) Silvestre Pinheiro Ferreira (...). Recebeu cada membro da junta duzentos e quarenta mil reis de ordenado...» (MARTINS, 1957:346).
Também é sabido que D. João VI tinha grande apreço por Pinheiro Ferreira, e que esta postura do monarca se estaria reforçando ao longo dos anos, na medida em que, sempre solicitou a opinião do filósofo luso-brasileiro. Este retribuía com lealdade e dedicação, não sendo, por isso, de estranhar a sua nomeação para a Junta da Imprensa Régia, a qual tinha funções de censura à própria Imprensa, e que não obstante esta competência, se considera em vários círculos que foi um grande passo no sentido da Independência do Brasil e para o exercício da liberdade.
Da discussão pública da Imprensa, se retiraram a religião e a política: «Excluídas da discussão pela Imprensa a religião e a política (num regime, é preciso lembrá-lo, de religião oficial e monarquia absoluta), poucas oportunidades e temas restariam para o exercício da liberdade “limpa e plena” (...)» mas para estabelecer o contorno do pensamento liberal brasileiro nos inícios do século XIX.
Assim se explica que a Impressão Régia fosse confiada a uma junta diretora, com amplas funções de censura – o que era normal num governo absolutista, mas explica também que homens como José da Silva Lisboa « (...) não tenham visto nenhuma contradição entre os seus princípios e o exercício do cargo.»
«E isto não ocorreu apenas nos tempos iniciais: o filósofo e publicista Silvestre Pinheiro Ferreira (...) Também fizeram parte da Junta (...). A plena liberdade de Imprensa, nos termos estabelecidos pelo pensamento liberal europeu, seria efectivamente exercida no mesmo ano de 1808, por um jornal brasileiro, publicado em Londres. (...) O Episódio é exemplar porque a própria censura determinou a criação de um jornal livre...» (MARTINS: 1977/78:31-32).
Igualmente é conhecida a grande preocupação de Silvestre Pinheiro Ferreira pelas questões sociais, porque, afinal, já na fase bem madura da sua vida, ele refletiu e passou o seu pensamento para a posteridade, através de vários trabalhos elaborados no exílio, em Paris.
Sem nunca renegar os seus ideais liberais, a partir do sistema monárquico-constitucional e, estudando, inclusivamente, as doutrinas do socialismo utópico, desde logo, a partir das utopias de Platão, Campanela, Fenelon e outros, ele vai buscar alguma inspiração ao socialismo de Saint-Simon, Touris e Owen, para melhor poder analisar a situação social da época, e assim fundamentar um projeto utilitário, pragmático e viável, no seio de um governo liberal, para o que defenderá processos de associação. Nesse sentido, o seu:
«Projecto de Associação das Classes Industriosas”, elaborado em 1840, cujo artigo Primeiro é demasiado significativo e justificativo quanto ao seu pensamento social: “A associação de classes industriosas será composta de todas as pessoas que quiserem assegurar-se mutuamente um auxílio fraternal para os casos em que acidentes naturais, a maldade dos homens, ou o abuso do poder, houverem causado prejuízos inevitáveis.» (FERREIRA, 1840:47).
Neste projeto, Pinheiro Ferreira, nos artigos subsequentes ao acima citado, traça as grandes linhas do funcionamento das associações a que se lhe segue uma primeira parte relativa à “Organização dos Grémios Industriosos” em geral, depois uma segunda parte reguladora da agricultura e das artes agrícolas, onde inclui o “Grémio do Comércio”, o “Grémio das Artes e Ofícios” e grémios anexos ao serviço do Estado, organização de escolas e oficinas de instrução, casas de saúde e casas de retiro, estabelecimentos de recreação e divertimento. Conclui o seu projeto com a exposição dos motivos e um mapa demonstrativo do Método das Eleições para estas associações.
Silvestre Pinheiro Ferreira, à época, não tinha uma ideia muito favorável quanto às consequências sociais da dinâmica liberal no panorama europeu, destinando o seu projeto, em primeira aplicação, à sociedade portuguesa, a partir dos problemas que se colocavam na Europa do proletariado e do campesinato, considerando: a concentração da propriedade, entendida como causa das desigualdades entre ricos e pobres; a elevada carga fiscal que ainda se fazia sentir e que constituía os resquícios do regime feudal; da galopante agiotagem e crescente pauperismo que conduz, necessariamente à marginalidade.
Eram necessárias reformas estruturais equilibradas e que se adequassem às soluções para os problemas sociais. Estas preocupações ficam bem patentes na carta que Pinheiro Ferreira endereçou a Osborne Henrique de Sampaio, aquando da apresentação do seu projeto:
«A classe industriosa, ou que vive do seu trabalho, bem que seja a mais numerosa e útil à sociedade, tem sido, infelizmente, até agora, em toda a parte, menos contemplada e favorecida do que podia e devia ser. (...) A miséria que oprime a classe laboriosa em Portugal está essencialmente conexa com as causas que nos trouxeram o estado político, em que nos achamos; e tanto aquela, como esta desgraça, não podem achar verdadeira cura, senão em uma adequada e completa reforma da organização social.» (Ibid.41).
Interessante a análise sobre a igualdade dos cidadãos, perante as obrigações relativas às contribuições impostas sobre os rendimentos, aliás, um tema que, já no início da terceira década do século XXI, ou seja, há quase cento e setenta e quatro anos, após a morte deste autor, continua a ser objeto de discussões acaloradas, quando se verifica que, no que concerne aos impostos, nem todos serão passíveis de tratamento justo.
Na análise sobre “Questões de Direito Público e Administrativo”, “Filosofia e Literatura” (1844), Silvestre Pinheiro Ferreira, no capítulo IV e relativamente à pergunta: “Devem os proprietários de Fundos Nacionais ou Estrangeiros ser isentos de contribuições impostas sobre rendimentos?”, começa por esclarecer qual a sua posição: «Sendo a igual distribuição dos encargos uma rigorosa consequência da igualdade dos direitos dos cidadãos, segue-se que todos estes, sem excepção, devem contribuir para as despesas públicas; cada um à proporção do seu líquido rendimento; seja qual for a natureza ou a origem desse rendimento(FERREIRA, 1844:273).
Verifica-se que Pinheiro Ferreira revela uma profunda preocupação e sentido de Justiça, no que respeita à assunção de responsabilidades fiscais, em função do rendimento efetivamente auferido pelos cidadãos. Considera que todo aquele que no momento em que faz a aplicação do seu dinheiro, nomeadamente sob a forma de fundos Nacionais ou Estrangeiros (que equivale, afinal, a emprestar dinheiro ao Estado) se for avisado que os juros que lhe são pagos, ficam sujeitos a imposto, como qualquer outro rendimento, então o mutuante particular deve pagar ao Estado o Imposto a que houver lugar.
Um outro aspeto muito importante, prende-se com a seguinte questão: “Devem os Estabelecimentos Particulares de Caridade ser isentos das contribuições impostas sobre os rendimentos? Trata-se de uma situação que, atualmente, em início do terceiro milénio, poderá ter alguma semelhança com as modernas Instituições Privadas de Solidariedade Social – IPSS – onde, normalmente, se incluem as Santas Casas de Misericórdia, Jardins-de-infância, Lares e outros estabelecimentos sociais, sem fins lucrativos. Pinheiro Ferreira parte do princípio segundo o qual:
«Os homens reuniram-se em sociedades para melhor se assegurarem o gozo dos seus direitos naturais de segurança, de liberdade e de propriedade. A imediata consequência deste tácito pacto social é que, se um cidadão não puder conseguir pelos seus próprios recursos e, salva a pública tranquilidade, o gozo de algum daqueles três direitos, é a sociedade obrigada a vir em seu auxílio. Tal é a origem de um dos primeiros deveres das Nações: A Beneficência Pública (Ibid.:276).
Silvestre Pinheiro refere que nas sociedades mais civilizadas, uma verba suficiente é retirada da totalidade dos impostos e consignada, precisamente, ao apoio social, a conceder a um número sempre crescente de pobres, inválidos e desfavorecidos. Esta situação de indigência leva a que determinadas pessoas, em solidariedade com os mais desfavorecidos, se constituam em associações, para assim complementarem uma ação social, contribuindo os associados com verbas doadas, às quais se juntam os valores provenientes dos impostos.
Tais associações, aprovadas pelo Governo, ficam, contudo, sujeitas à fiscalização das entidades competentes. Resulta que não será legítimo que tais instituições paguem impostos, na medida em que se tornaria injusto e ineficaz tributar esmolas e donativos com impostos, como se estes rendimentos fossem equiparados a quaisquer outros e com a finalidade de que estes se destinam à beneficência pública.
Projetos como o que se acaba de analisar, podem levar a aceitar, com alguma razoabilidade que, independentemente da quota de participação que se consiga estabelecer, eles contribuíram para que na sociedade se viessem implementando os valores de solidariedade social e o crescente número de Instituições de Beneficência, parecendo que o contributo de Pinheiro Ferreira e de outros ilustres pensadores, teria sido muito importante, não só na época, como para os dias desta modernidade do século XXI.
Aliás, na área do socialismo utópico do século XVIII, a preocupação relativamente aos mais desfavorecidos foi tema que, inevitavelmente, os pensadores-ideólogos abordaram com muita frequência e entusiasmo, contribuindo para a proliferação de uma mentalidade solidária, porém, muito pouco conseguida no campo da vida real, pesem, embora, algumas realizações a partir da constituição de associações de caridade.

FERREIRA, Silvestre Pinheiro (1840) Projecto de Associação para o Melhoramento da Sorte das Classes Industriosas, in: José Esteves Pereira, (1996) (Introdução e Direcção de Edição) Silvestre Pinheiro Ferreira, Textos Escolhidos de Economia Política e Social (1813-1851). Lisboa: Banco de Portugal
FERREIRA, Silvestre Pinheiro (1844) “Questões de Direito Público e Administrativo, Filosofia e Literatura”, in: José Esteves Pereira, (1996) Silvestre Pinheiro Ferreira, Textos Escolhidos de Economia Política e Social (1813-1851) Lisboa: Banco de Portugal
MARTINS, Wilson, (1957). A Palavra escrita – História do Livro, da Imprensa e da Biblioteca, S. Paulo: Editora Anhembi Limitada.
MARTINS, Wilson, (1977-1978). História da Inteligência Brasileira, São Paulo: Cultrix /Universidade de São Paulo. pp. 32-54.
VARNHAGEN, Francisco Adolfo de, (1975). História Geral do Brasil. Tomo Quinto, 8a Edição integral, São Paulo: Edições Melhoramentos. Nota 84.


Com o protesto da minha perene GRATIDÃO

Diamantino Lourenço Rodrigues de Bártolo

Presidente do Núcleo Académico de Letras e Artes de Portugal

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