Sentia-a como a melhor pessoa que alguma vez lhe coubera. A cumplicidade nas diferenças que tinham era enorme. O amor que nutriam um pelo outro era ainda maior.
Reduzido a uma provisória e passageira condição de viúvo, com a cama desfeita de um só lado, com um vazio secreto de que só se dava conta a espaços na noite e na hora do acordar, João vivia os dias triste a cansado, mas só pela condição de ser assim, triste.
As insónias vivia-as sozinho, tal como ela que, no andar de cima nem cama tinha, antes um catre estreito e curto, onde dormia, ou tentava dormir. Ela que era grande, comprida, muito mais do que ele.
"que queres que te faça, ressonas!"
Ele bem que sabia disso, mas não controlava o barulho que desde há alguns anos fazia. Era um barulho com vida própria, senhor do seu nariz e totalmente independente da sua vontade.
"quando deixares de ressonar eu volto a dormir contigo"
O quanto lhe custava aquela viuvez nocturna mas bem compreendida e aceite, e a decisão dela de não estar a seu lado.
"amanhã tenho de trabalhar, não posso perder noites"
E lá iam, cada um para seu lado, ou melhor, cada um para o seu andar, que ela tinha uma espécie de apartamento no andar de cima transformado de uma sala que tinha uma vista de encher o olho, e que por causa do calor e da luz estava na maior parte das vezes na penumbra.
"eu queria ficar a teu lado, mas ressonas. queres que eu não durma?"
Maldito ressonar que desde há anos lhe atormentava a existência. Mais a dela, claro, que do ressonar ele se não dava conta, só das implicações. Já tinha tentado quase tudo, menos parar de respirar. Tinha ido a médicos, fizera testes e exames, mas de bons resultados, nada.
"vamos trocar meu amor, dormes tu na cama e eu lá em cima"
Que não, que ele é que precisava da cama. Ela bem que podia ficar lá por cima. Já se tinha habituado e quase que já gostava que assim fosse.
"mas..."
O amor que cada um sentia fazia-os proceder assim. Um e outro, provisoriamente viúvos, pontualmente divorciados, separados durante horas em conjunto e comunhão de ideias e de vivências, cheios de amor um pelo outro.
João sofria aquela viuvez em silêncio, sem nada lhe dizer. Ela nem se apercebia que o sofrimento dele poderia ser porventura maior do que ela supunha. Que falta lhe fazia o poder velar-lhe o sono, o poder cuidar dela durante a noite, medir-lhe a respiração, poder olhá-la no seu dormir calmo, poder sentir-lhe o corpo descontraído, poder tocar-lhe ...
Ele não queria ser viúvo nem por um minuto, e era-o todas as noites, durante a noite e as manhãs dos fim-de-semana.
"preciso de descansar. não me acordes"
Que ela precisava de descansar, pelo menos nessas alturas. A vida nunca lhe fora fácil, e continuava a não o ser. Todos lhe cobravam favores, trabalhos, mimos. Todos viam nela nada mais que uma "Cinderela".
E que bem que João a entendia. O amor que lhe tinha era muito maior que aquela sensação má da separação temporária e provisória. Bem que podia ser diariamente viúvo por umas horas. Afinal eram só umas horas de cada vez e na maior parte delas ele estava a dormir.
Um dia, sem que ele, viúvo temporário e pontualmente divorciado o decidisse, o ressonar parou, e o movimento inconsciente das pernas, e o não conseguir estar quieto mais que breves minutos, e as comichões, e o respirar. Sozinho, sem ninguém dar por isso.
"adeus meu amor, até já"
Estranhamente não lhe custou nada aquela ocorrência, não ficou triste ou desalentado, só um pouco conformado com a evidência ..., já estava habituado àquela viuvez.
E também lhe não custou porque não foi um adeus definitivo, antes um breve e longo adeus, uma vez que ninguém poderia alguma vez separar para sempre estes que de amor sempre se alimentaram.
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