Canção da Saudade- José de Almada Negreiros


Se eu fosse cego amava toda a gente.
Não é por ti que dormes 
em meus braços que sinto amor. 
Eu amo a minha irmã gemea que nasceu sem vida, 
e amo-a a fantazia-la viva na minha edade.
Tu, meu amor, que nome é o teu? 
Dize onde vives, dize onde móras, 
dize se vives ou se já nasceste.
Eu amo aquella mão branca 
dependurada da amurada da galé 
que partia em busca de outras galés 
perdidas em mares longissimos.
Eu amo um sorriso que julgo ter visto 
em luz do fim-do-dia por entre as gentes apressadas.
Eu amo aquellas mulheres formosas 
que indiferentes passaram a meu lado 
e nunca mais os meus olhos pararam nelas.
Eu amo os cemiterios - as lágens s
ão espessas vidraças transparentes, 
e eu vejo deitadas em leitos florídos virgens núas, 
mulheres bellas rindo-se para mim.
Eu amo a noite, porque na luz fugida 
as silhuetas indecisas das mulheres são 
como as silhuetas indecisas das mulheres 
que vivem em meus sonhos. 
Eu amo a lua do lado que eu nunca vi.
Se eu fosse cego amava toda a gente.


Almada Negreiros, in 'Frisos - Revista Orpheu nº1'

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