Artesão de sonhos- Manuela Ferreira



Era um homem velho, artesão de sonhos,
Aquele que eu via no largo da aldeia.
Como eu gostava de o ver chegar
Envolto em trapos feitos de memórias.
Um corpo esguio, esculpido pela fome,
Um saco vazio, tão cheio de histórias.

Eu sentava ali, bem perto do chão,
Enquanto ele olhava tão sofregamente.
Tirava do bolso um naco de pão,
Depois, só depois, voava no céu.
Sem pasta, sem livros, que bem ele lia
Os meus olhos negros trazidos de casa.

Então, eu subia, subia, subia,
Ao cimo das nuvens, tal anjo da guarda.
Um grande cordel, e o velho guiava,
Do pico das pedras, o sonho no céu.
E o velho sabia, mas nunca me disse,
Que o sonho que tinha ele é que mo deu.

Se o sol aquecia as asas de mais,
O velho puxava com força brutal.
O fio cedia àquela vontade,
Eu voava ilesa por entre os pardais.
Depois, mais um voo, pousava no chão,
O velho ali estava à espera de mim.

Eu olhava-o triste, de regresso a casa,
E ele sabia que estava no fim.
Mas nunca me disse para onde ele ia,
Talvez não quisesse que o sonho partisse.
Eu esperei, esperei, sentada no chão.
Nunca mais voei desde aquele dia.

Então eu dormi tão profundamente,
Enrolada nas pedras, tão triste, tão só.
Sonhei que fiquei com o fio na mão.
Minha mãe apontou-me uma estrela cadente.
Eu puxei, puxei, o velho não veio.
Chamei-o tão alto, disseram-me não.

E logo eu gritei de novo outa vez:
-Trago para ti um naco de pão.
Vem cá, quero ver-te, levar-te comigo,
Guardar-te bem dentro do meu coração.
O velho não veio, olhei aturdida,
Do cimo do sonho, o fundo da vida.
E os meus olhos negros, prostrados no chão,
Viram tantos velhos caídos em vão.



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