Mirna e a viking de tranças- Perce Polegatto



    De bruços na cama, eu acompanhava os esforços de Mirna das Selvas em suas aventuras solitárias, atento às expressões de seu rosto, tantas vezes ligado por uma trilha de pequenos globos brancos a um balão-nuvem no qual se organizavam espaços e curiosos sinais. Olhos cintilantes perdidos no horizonte das grandes clareiras. Brincos, braceletes de couro. Armas rudimentares. Cabelos negros, longos e revoltos. Agachando-se por alguma estranha pegada. Eu lia em seu rosto suas decisões. E seus silêncios. Ao contrário dos heróis que abatiam feras nos quadrinhos, Mirna fora ferida por um leão, e só pudera salvar-se graças a uma árvore adequada à sua agilidade mas imprópria aos felinos de grande porte. A fera rasgara-lhe as peças de roupa, que eram uma blusa sem mangas, fechada entre os seios por cordões, e uma saia curta de bainha desfiada, com isso tornando-a seminua. Isso aguçou minha atenção, subitamente desviada da aventura que seguia. Uma das alças desfizera-se, caindo pelo braço arranhado até o cotovelo e ampliando a linha que lhe abria parte de um seio a meus olhos mudos. Mirna sofria a fome e o cansaço. Mais embaraçava-se em arbustos ou resvalava entre rochedos, mais se destroçavam suas roupas de tecido rústico, mais sangravam seus ombros e seus pés, mais eu a admirava – e me surpreendia feliz. Verificava as expressões de dor em seus olhos. Também de medo e derrota, apesar de sua obstinação.
    A jovem viking participava de uma ilustração apenas. Sua história não continuava. Seu drama era vivido ali, entre duas páginas abertas. Sobre as águas do majestoso fiorde, a barcaça funerária ardia, em cores intensas. Outras pessoas enlutadas assistiam solenemente ao rito. Só a loira de tranças, num vestido negro que lhe revelava a forma dos seios e a sugestão das nádegas, soluçava, de joelhos, amparada por um arranjo de rochas que lhe permitia curvar-se de lado e ocultar o rosto entre os braços. Vê-la chorando despertava-me uma impressão não de volúpia, mas de amor. Sabia que ela precisava de mim. Quase podia tocar-lhe o ombro, beijar-lhe a fronte. Achava extraordinário que uma escandinava de tranças também chorasse, como as de seu povo choravam seus mortos, um morto. Ao fundo, o incêndio sobre as águas, um espetáculo de labaredas que era a própria metáfora de suas emoções sobre lágrimas, como consumindo, na mesma proporção, seu pequeno coração sem consolo. Eu a observava, curioso e solidário. Como podia uma jovem tão atraente chorar daquela maneira? Lamentaria a perda? O inevitável? Seu próprio pranto reprimido durante anos, entre longos invernos? O texto sob a ilustração talvez esclarecesse tudo. Mas harmonizava-se com os gravetos e com as estranhas ramagens que se desgarravam da floresta, a mata escura onde também se fragmentavam os caracteres a um menino que ainda não os podia decifrar.
    Os ferimentos e as expressões de dor que atravessavam o belo rosto de Mirna das Selvas, tanto quanto as lágrimas que punham de joelhos a jovem nórdica, causavam-me lentas ereções. Os livros deram-me conhecer, desconsiderando-se experiências com que me defrontava antes que a vida as trouxesse, minhas primeiras sensações conscientes entre impressões de beleza física e intensa atração por semelhantes de outro sexo. Deram-me primeiro a piedade e o sadismo, o desejo de possuir e consolar, o leão que a uma feria, o morto que à outra fazia sofrer, assim as relações de brutalidade e delicadeza com que num homem a prepotência e o amor se confundem. Abriram-me a seminudez de Mirna e o luto da loira escandinava, as primeiras mulheres que amei.

Da coletânea “Lisette Maris em seu endereço de inverno” 


Comentários