É uma menina, eu sei. Pronta a assumir as primeiras formas da adolescência. Seu rosto imóvel e sua proximidade me perturbam, e ela me encara muito seriamente. Sinto que está prestes a romper o enigma de seu próprio silêncio para confiar-me uma revelação extraordinária. Tento em vão chamá-la, quando se vira sem uma palavra, entra a correr em direção ao muro que fecha a travessa. A última casa, eu me lembro. Grito que espere, e nenhum som parte de minha garganta. Vejo-a distanciando-se na perspectiva agonizante de eu não poder alcançá-la – e isso demora a passar.
Eu dividia a mesa de jantar com um casal que a princípio não reconhecera. Eram meu pai e minha mãe. Jantávamos em silêncio, compartilhando a penumbra gerada por uma única vela que estremecia, no centro da mesa. Sendo pobres, desde cedo eu me acostumara a refeições medidas e hábitos moderados. E comia devagar, com esperanças de que isso me revigorasse e agisse contra a febre importuna que há dias minava-me a saúde e a lucidez. O alimento mastigado aos poucos me fazia crer que tudo aquilo não era outro sonho, apesar de minha visão turva e imprecisa.
Sentia arder todo o corpo. Calafrios percorriam-no desde a extremidade dos dedos, fazendo-me tremer. Talvez nem a chama da vela, em si mesma, fosse tão trêmula ou ardesse mais intensamente do que eu. Creio que seria essa a sensação experimentada se todos os dias, noites e estações do ano, com suas variantes térmicas, se abatessem sobre uma pessoa de uma única vez. E eu ardia mais do que a vela, mais do que tremulava sua chama.
Voltando ao casal, vi com clareza que não eram meus pais. Eram meu irmão e minha irmã. Diziam algo incompreensível, movendo os lábios sem que eu pudesse distinguir-lhes as palavras.
Observando melhor seus rostos mal iluminados, constatei com espanto que me sorriam dois amigos de infância, a quem nunca mais encontrara ao longo da vida. Estreitando os olhos, vi que um deles era uma menina, Nádia, a primeira paixão que recordo haver-me arrebatado ainda entre as últimas estações da infância, trazendo novas dimensões à minha existência.
“Nádia!”, exclamei, sem ouvir minha própria voz.
A luz anêmica da vela pareceu descortinar-se num rasgo de claridade, e eu me encontrava outra vez diante da vila de casas mal recortadas onde morávamos. Lembro-me da última casa, na travessa sem saída, junto ao muro escurecido de musgo. Nádia morava ali.
A imobilidade de seu rosto me perturba. Nebulosa e sem sorrir, ela me encara com seriedade. Julgo que afinal hei de ouvir a revelação que me permita compreender o mistério de termos sido, eu e ela, o que fomos. Ela me deixa sozinho. Corre de volta a sua casa, sem que eu possa me mover, e desaparece pela última porta, junto ao ângulo irregular da esquina interna.
“Nádia!”
Senti a fria umidade do muro que delimitava a vila; senti também a umidade de meus olhos e tremores que não pude dominar. Será que você morreu? Não para mim, Nádia. Não para mim. Impulsos febris não permitiam que as imagens se firmassem, ou talvez devesse tudo ao tremular da chama, o que impedia que eu me refizesse para a lucidez. Traziam à mesa tantos que me acontecera conhecer. E assim voltaram, entre os amigos, o mais sincero; entre os infames, o que me havia importunado e perseguido. Senti as noites de minha juventude, o calor e o sereno de madrugadas sem fim, constatei prostíbulos que me escaparam às palavras enquanto os vivi e que não procurei resgatar na poesia das cartas. Identifiquei cada festa, cada momento de orgasmo e vertigem, cada solidão. Revi amigos, colegas, parentes, vizinhos, figuras avulsas e mulheres inesquecíveis, impregnadas em minha carne e em meus remorsos. Reencontrei a que me havia traído; ao lado dela, reconheci seu amante – não havia culpa senão em mim.
Foram muitos no decorrer do delírio, lembrados pela haste de cera cada vez menor. O mesmo casal tornou-se muitos, alternadamente, de maneira que não me permitia precisar o movimento nebuloso de tais metamorfoses. Em certos lapsos de penumbra, foram o mais repulsivo dos patifes e a mais ingênua criatura. Foram anjo e demônio, conforme a chama os fazia: estes que ainda se deslocam pelo mundo e aqueles para quem o mundo nada mais é. Os rostos emergiam das sombras, um após outro, quase distraindo-me do fato de a vela de cera estar chegando ao fim.
Dava-se a última oscilação de claridade na penumbra. Eu tentava fixar os rostos que me escapavam, antes que a escuridão se fizesse completa. Ardia-me um desejo desesperado de rever a todos, ainda uma vez. Todos, sem exceção. Do mais torpe ao mais virtuoso, sem saber onde tudo era eu mesmo, até onde minha vida, minha morte, até onde minha febre.
Tenho diante de mim meu próprio rosto duas vezes, talvez muitas: amargo, assistindo ao desfecho da chama; outro parece sorrir de ternura, embriagado ainda com a latente sensação de haver compartilhado a mesa com tantos outra vez. Vejo Nádia voltando, agora devagar, à casa da última porta, sem que eu pronuncie sequer o seu nome.
Pouco antes, com os mesmos olhos profundamente secretos, ela se mostrava muito próxima, encarando-me como se finalmente eu pudesse compreendê-la. E ela não tinha nada, absolutamente nada para me dizer.
Da coletânea “Lisette Maris em seu endereço de inverno”
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