Rapsódia em cinza- Perce Polegatto

 












Sol em teu passado, mesmo que hoje atravessa teus olhos.
Mesmo o inverno. Dias de chuva.
            E teu sonho.

Este o dia, e não outro – emoldurando teu espelho em curso.
Lendas de estações mal esquecidas, narrações de fadas extraviadas:
            não há outro Egito, outra Grécia,
            outra Roma – não há outra tua infância.
Sob o riso largo das tempestades, a assinatura do relâmpago
– e teu sonho.

Esta casa, não outra – o endereço de tua infância.
Não há rua assim inconfundível
(por onde outros passeiam sem espanto)
nem fachadas que te podem confiar surdos segredos.
            Daí o impacto de assim te arrebatarem.
            Daí, entre laivos disformes, a dor de não as compreenderes.

                                                *

A lagarta tece a borboleta.
Formigas vão e voltam, tocam-se os homens pela memória.
De esterco nutre-se a floração enquanto a arquitetura da morte
produz lâminas de fungos entre a relva e a erva úmida
no ermo
de um jardim que nunca passa.
            E dentro de sua luz contém o espaço.
            E desde o dia azul prepara a sombra.

            Não a caixa de correio, não o vaso de avenca,
            não os avós em repouso ou a perspectiva da antiga tarde.
            Não as nódoas em anosa madeira, outra porta sem chave,
            hoje gritos contidos entre as contas-solidões do cristal-tempo.

Quando entra em cena o calendário em que crês?

Hoje as mãos de teu inimigo e os pés de tua amada,
hoje a maneira como os ventos retornam
– a quem alguma vez abriu-se à última fronteira, ainda assim –
te posicionam em face do mínimo grão.

Silêncio – e seu potencial de ausência.
            A ti outros resquícios reafirmam
            que os mortos ainda têm sonhos ruins.

                                                *

Sol em teu passado, mesmo que hoje atravessa teus olhos.
Mesmo o inverno. Dias de chuva – e teu sonho.

Este, o dia – e sua temperatura.
Sono de andarilhos. Febre de passagem.
E as pedras com que,
uma a uma,
compões o teu jardim.


Da coletânea “Diário contra o destino” 


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