Quando penso em minha infância, vejo um menino atrás da vidraça numa noite tempestuosa – rosto sem sorrir, olhos iluminados por relâmpagos que o fascinam.
O relâmpago irrompe das nuvens, ramifica-se no céu, e eu vejo um menino cultivando, entre outras maravilhas, sua árvore de ovos, a que no verão reluz como um arranjo de pérolas ao longe; no outono, deita cascas ressequidas; no inverno, põe-se uma árvore como outra nua qualquer (os que passam ignoram seu segredo de sementes); e, na primavera, ostenta grandes formações, dentro das quais se adivinham gemas suculentas. Dragões emergem das chaminés. Cogumelos na relva. Há também a marcha de partículas de poeira rumo ao Sol.
O relâmpago cai das alturas, precedendo o estrondo que lhe corresponde, move a terra, e eu vejo um menino mudo. Se não sorria, hoje menos se vê em seu rosto. Pensa que a madeira da janela tem atravessado o tempo, e os carpinteiros e os vidraceiros estão todos mortos. Uma janela que, sendo a mesma, abre-se para esta noite tempestuosa que é hoje noite (não mais), tempestade (não mais), vidro por si só.
O relâmpago fende a noite suspensa, e eu vejo um menino contra seu próprio reflexo, gotas escorrendo de seus olhos ou lágrimas de chuva, pois vê atrás de si uma mulher. Simplória e mal-vestida, encosta-se a um muro, porque não tem casa, e ali, a despeito das adversidades, do desamparo e do trauma de abortos anteriores, chora de dor e de prazer ao externar seu êxtase. Começa a chover. É um menino.
O relâmpago bifurca-se, triparte-se no céu, e eu vejo um menino entretido em não apenas registrar, aproveitando-se do luminoso labirinto que lhe proporcionam as tormentas: vivenciar, supondo-se à parte do tempo e das casas, o que possa minar os homens como a umidade na fresta das molduras de todas as janelas e infâncias.
Da coletânea “Lisette Maris em seu endereço de inverno”
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