A primeira história mágica interrompida- Perce Polegatto



    A primeira vez que me lembra ter ouvido uma história deu-se, magicamente, em uma noite de chuva, e eu não estava em casa. Ao redor da cama, fazíamos um aglomerado de crianças curiosas enquanto uma mulher pegava a ler a impressionante história de Rapunzel, que lhe chegava às mãos por meio de um livreto infantil maravilhosamente ilustrado. Ia adiantada a festinha, e o aniversariante, um menino do quarteirão, participava tanto quanto nós daquele círculo de ouvintes, quase como se não fosse seu o presente. Éramos muito pequenos, e ele tinha razão: o que nasce das páginas de um universo assim não nos pertence senão a todos. Não tenho certeza de que idade eu tinha. Porém, vejo, como se neste instante, os olhos atentos de alguns que me rodeavam. Tenho dúvidas sobre o nome desse coleguinha da vizinhança, que me volta hoje com duas ou três variantes. E também ouço, quando quero, a voz dessa mulher contando o que lia: sem exageros, sem afetação, apenas serena e se fazendo entender, na exata medida para que nos encantássemos. Eu não saberia sequer voltar àquela casa, não tenho certeza de qual era – os bairros pobres têm fachadas muito parecidas. Mas não consigo esquecer o momento em que minha mãe, tanto quanto os pais de algumas outras crianças, entrou no quarto para levar-me dali, pois a chuva havia passado, e era tarde para que ainda nos demorássemos. Só em outra fase, conheci o fim da história. E antes não o soubesse, que a duração daquele enigma era outro motivo de eu estar vivo.
    Fatalmente, são hoje tais recordações o que me constrange, o que me põe a lamentar algo que tenha perdido, sem tê-lo suspeitado senão quando tarde demais, o que surdamente ainda oprime e impede o seguir viagem. O que escrevo não pretende ser convertido na moeda dos que apenas negociam. Isto que relato não precisa correr mundo. Não precisa levar a público a minha imagem nem mesmo despertar qualquer curiosidade sobre minha vida pessoal – afinal de contas, imagem e vida de um homem tão comum. Mas é ainda, misteriosamente, uma das fortes razões de eu seguir apaixonado pela vida. Afinal, por mais absurda que seja nossa existência, quando encontramos uma boa história, queremos muito saber não como ela termina, mas como ela continua.


Do romance “A seta de Verena” 

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