Adeus- Eugénio de Andrade

Já gastámos as palavras pela rua, meu amor,
e o que nos ficou não chega
para afastar o frio de quatro paredes.
Gastámos tudo menos o silêncio.
Gastámos os olhos com o sal das lágrimas,
gastámos as mão à força de as apertarmos,
gastámos o relógio e as pedras das esquinas
em esperas inúteis. Meto as mãos nas algibeiras
e não encontro nada.
Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro!
Era como se todas as coisas fossem minhas:
quanto mais te dava mais tinha para te dar.

Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes!
e eu acreditava.
Acreditava,
porque ao teu lado
todas as coisas eram possíveis.
Mas isso era no tempo dos segredos,
no tempo em que o teu corpo era um aquário,
no tempo em que os meus olhos
eram peixes verdes.
Hoje são apenas os meus olhos.
É pouco, mas é verdade,
uns olhos como todos os outros.

Já gastámos as palavras.
Quando agora digo: meu amor...,
já se não passa absolutamente nada.
E no entanto, antes das palavras gastas,
tenho a certeza
de que todas as coisas estremeciam
só de murmurar o teu nome
no silêncio do meu coração.
Não temos já nada para dar.
Dentro de ti
não há nada que me peça água.
O passado é inútil como um trapo.
E já te disse: as palavras estão gastas.
Adeus.

Eugenio de Andrade

 

Comentários

Eugénio de Andrade é um dos meus poetas preferidos e este Adeus é um dos poemas que me toca em absoluto o peito. Tanta coisa presente nestas palavras gastas como se fossem matéria que o tempo gastou.
Bem hajas pela escolha.

Deixo-te um poema menos conhecido que "roubei" na exposição sobre Florbela Espanca que E. de A. lhe dedicou.

NA VARANDA DE FLORBELA

Aqui cantaste nua.
Aqui bebeste a planície, a lua,
e ao vento deste o olhar a beber.
Aqui abandonaste as mãos
a tudo o que não chega a acontecer.

Aqui vieram bailar as estações
e com elas tu bailaste.
Aqui mordeste os seios por abrir,
fechaste o corpo à sede das searas
e no lume de ti própria te queimaste.

Eugénio de Andrade, “Escrita da Terra e Outros Epitáfios”
Limiar, 1997
Beijinho
Minha querida Fernanda
Um dos poemas que eu gosto mais de Eugénio de Andrade, uma bela escolha.

Beijinhos
Sonhadora