Vergonha- JG de Araujo Jorge



"Num mundo em que há migalhas e esperdícios
pratos cheios de restos enfastiados
e bocas que salivam sem ter pão;

e em que há crianças tristes, maltrapilhas,
que não terão nem livros nem recreios
nem mesmo infância no seu coração;

num mundo onde os enfermos são tratados
com a caridade irônica dos homens
proprietários dos próprios hospitais;

onde alguns já nasceram infelizes
e hão de viver sem segurança e paz,
sem meios de lutar, abandonados,
e outros, trazem do berço as regalias
que hão de inutilizar, despreocupados;

num mundo, onde há mãos cheias, transbordantes,
e há mendigando, pobres mãos vazias;

onde há mãos duras, ásperas, cansadas,
e suaves mãos inúteis e macias;
onde uns têm casas grandes, com jardins,
e outros, quartos estreitos, sem paisagem;

num mundo onde os artistas prisioneiros
fazem "roda" nos mesmos quarteirões
sonhando sempre uma impossível viagem;
e há homens displicentes, nos navios,
carregando "kodaks" distraídas
que têm mais alma que os seus olhos frios,

num mundo onde os que podem não têm filhos
e os que têm filhos, quase sempre lutam
porque não podem constituir um lar.

num mundo, onde ao mais leve olhar humano
vê-se que não há nada em seu lugar.
e onde, no entanto, fala-se em Direito,
em Justiça, em Razão, em Liberdade;

num mundo onde os que plantam, pouco colhem
e os que colhem, não sabem, na verdade,
de onde vêm as colheitas que consomem;

num mundo, onde uns jejuam muitos dias,
e outros, por vício, muitas vezes comem;
sinto a angústia fatal de ter nascido e
a suprema vergonha de ser homem!


JG de Araujo Jorge


Comentários

Viviana disse…
Extraordinário poema!

Obrigada Fernanda.

Um abraço

viviana
Anónimo disse…
Um dos poemas mais interessantes que li até hoje!

Gostava de ter sido eu a escreve-lo.

Boa escolha!