Auto do Retrato- Ana Lúcia Rocha

Não, não são mágoas tingidas de negro
Não são nódoas que o tempo deixou reluzente
Não é falta de tinta
tinta de má qualidade,
a quente
Sarada em mil archotes quebradiços
Não é falta de cor
Nem são feitiços
Não é a virtude prematura
se na garganta ficou a secura
e as palavras não entoaram a ternura
de uma premeditação futura
A preto e branco, assim porque eu gosto mais!
Não são poros
nem calafrios
nem são as loucuras dos mortais
É pele velha, nua, triste, seca, áspera, fria...
Não são densos fragmentos que carrego neste jovem corpo
Pigmentos de Verão.. queria
Tardes agrestes de Inverno.. seria
Se a chuva parou de rugir no meu rosto
e as rudes sílabas que soletram o meu sopro
Não é erro de impressão
a tecnologia já não artimanha assim
Não é a frágil sensação
nem a astúcia do coração
de que um dia haja um fim
Fica a preto e branco, porque assim?
Porque assim eu gosto mais...  
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 Ana Lúcia Rocha
Foto de perfil de Ana Lúcia Rocha




Comentários

Eu que vibro com a poesia não pude deixar de sentir a intensidade deste poema. Senti que vem do mais profundo da alma e não precisei de me esforçar absolutamente nada para sentir a autenticidade de sentimentos e de um estado de alma, talvez comuns a muitos. Fica apenas a tristeza de que os jovens deveriam escrever coisas alegres, mas eu sei que pessoas diferentes sentem o mundo de modo diferente, independentemente da idade. Obrigado Ana Lúcia Rocha por cederes este poema a este espaço.

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Fernanda
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Resposta de Ana Lúcia ;


-Boa noite Fernanda Rocha, sinto-me lisonjeada por tais nobres palavras. No fundo, não escrevi este poema com o intuito de descortinar uma realidade que afecta a generalidade da minha geração: estava a chover muito lá fora, e eu tinha o carro estacionado à porta de casa, na esperança que a forte chuva cessasse, e só assim poderia entrar.. Lentamente observava toda aquela imensidão de gotículas que "chocavam" nos vidros do carro e escutava aquele som característico que estas faziam. Senti que aquele fenómeno teria de ser descrito, e então no meu "bloquinho vermelho" descrevi tudo o que me passou pela cabeça naquele exacto momento. Sentia-me e por me vezes ainda me sinto assim, exteriormente radiante, mas no meu interior apenas e somente sinto uma enorme mágoa. Uma mágoa que nem eu própria sei justificar. Aquela tarde chuvosa era o meu auto-retrato e hoje, apesar de já não chover, de cada vez que leio o meu poema, sinto em mim cada gotícula daquele dia tempestuoso.
Talvez um dia, eu consiga transmitir palavras bem mais calorosas tal como igualmente belas!