Sombras- Machado de Assis

   Quando, assentada, à noite, a tua fronte inclinas, 
 E cerras descuidada as pálpebras divinas,  
E deixas no regaço as tuas mãos cair,  
E escutas sem falar, e sonhas sem dormir,  

Acaso uma lembrança, um eco do passado, 
 Em teu seio revive?  O túmulo fechado   
Da ventura que foi, do tempo que fugiu,  
Por que razão, mimosa, a tua mão o abriu?  

Com que flor, com que espinho, a importuna memória  
Do teu passado escreve a misteriosa história?  
Que espectro ou que visão ressurge aos olhos teus?  
Vem das trevas do mal ou cai das mãos de Deus? 

 É saudade ou remorso? é desejo ou martírio? 
 Quando em obscuro templo a fraca luz de um círio  
Apenas alumia a nave e o grande altar  
E deixa todo o resto em treva, — e o nosso olhar  

Cuida ver ressurgindo, ao longe, dentre as portas  
As sombras imortais das criaturas mortas,  
Palpita o coração de assombro e de terror; 
 O medo aumenta o mal. Mas a cruz do Senhor, 

 Que a luz do círio inunda, os nossos olhos chama;  
O ânimo esclarece aquela eterna chama;  
Ajoelha-se contrito, e murmura-se então 
 A palavra de Deus, a divina oração.    

Pejam sombras, bem vês, a escuridão do templo;
Volve os olhos à luz, imita aquele exemplo;  
Corre sobre o passado impenetrável véu;  
Olha para o futuro e vem lançar-te ao céu.




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