Autobiografia- António Gedeão



Enquanto comia
num gesto tranquilo,
comia e ouvia
falar-se daquilo.
Domia e ouvia
solicitamente,
como se presente
presente estaria.

E enquanto comia,
comia e ouvia,
a frágil menina
que no fundo habita,
que chora e que grita
saía de mim.

Saía de mim
correndo e chorando
num gesto revolto,
cabelinho solto,
roupa esvoaçando.

Ia como louca,
chorava e corria,
enquanto eu metia
comida na boca.

Fugia-lhe a estrada
debaixo dos pés,
a estrada pisada
que o luzeiro doira,
serpentina loira
que vai ter ao mar.

Corria a menina
de braços erguidos,
seus brancos vestidos
pareciam luar.

Por dentro ia a noite,
por for a ia o dia.
A vida estuava,
a maré subia.
Caiu a menina

na praia amarela,
logo um modelo de algas
se apoderaram dela.

Se apoderou dela
carinhosamente,
que as algas são gestos

mas não são de gente.

Caiu e ficou-se
deitada de bruços,
desfeita em soluços
sem forma nem lei.

Ò minha àguazinh
faz com que eu não sinta,
faz com que eu não minta,
faz com que ue não odeie!

Àguazinha querida,
compromisso antigo,
dissolve-me a vida,
leva-me contigo.

Leva-me contigo
no berço das algas;
que o sal com que salgas
seja o meu vestido.

Ficou-se a menins
desfeita em soluços,
seu corpo, de bruços,
com o mar a cobri-lo,
enquanto eu, sentado,
sentado comia,
comia e ouvia,
falar-se daquilo.

António Gedeão




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