PEQUENO CONTO EM PROSA POÉTICA “A POETISA DAS AREIAS”- João Murty



     Zaidi Hammel encostou as costas à amadurada do barco, compôs o xaile que lhe cobria os ombros. A aragem fria da manhã entrou-lhe abruptamente no pensamento desnudando a memória trazendo à colação os acontecimentos galopantes, que levara a sair da cidade de Argel. Fugir da guerra, na ânsia de encontrar algum sinal de esperança e liberdade para dar continuidade à vida.  
   Todos eles eram filhos das batalhas argelinas. Do apocalíptico deserto. Da poeira consagrada e sacramentada. Eram do tempo da guerra, onde a visão do sangue, das lágrimas, era rotineiro. A cada dia na África nasce o sonho da liberdade. E morre sempre, juntamente com cada criança subnutrida e abandonada no chão rachado. 
   Encontrar liberdade, liberdade essa palavra rara. Talvez toda a história da humanidade possa ser resumida em uma única frase “a eterna busca dos homens por sua liberdade”. O lutar por horizontes também pode ser um perigo, vive-se o temor do risco, a desgraça da dúvida. Às vezes, porém, é necessário que se ande em direção ao obscuro, principalmente se o conhecido é sombrio e tenebroso.  
    Aos sinais da guerra o hotel onde trabalhava fechara, o seu marido Beni Douala fora assassinado por rebeldes extremistas afetos ao Estado Islâmico e ela viu-se sozinha com o seu filho Nabil.  
    Deu o corpo, o ouro e algum dinheiro que tinha amealhado, para conseguir lugar no barco que os colocaria em Itália. Tudo fizera para que Nabil pudesse ter um crescimento normal, longe das atrocidades da guerra, mas a ironia do destino, riu-se-lhe na cara. Quinze dias antes da partida, um estilhaço de um morteiro acabara com a vida do pequeno Naibil. 
   Sem alento embarcara naquela aventura rumo à Europa. Consigo apenas levava uma mala com pouca bagagem e uma pequena caixa com algumas recordações marcantes; fotos, postais e dois livros de poesia que a sua alma sonhadora inspirara. 
   Zaidi suspirou, estava num barco cheio de gente, o qual já deveria ter chegado ao destino… mas tudo indicava que vogava perdido, estavam há cinco dias no mar! Nos rostos era patente os traços de sofrimento e dor.  
   Zaidi questiona-se num murmúrio. - Porquê, meu Deus, tanta desgraça? Fixou as mulheres com as crianças ao colo, pareciam personagens saídas daquele velho poema pautado pela tristeza. 
 Oh tristeza minha tristeza, 
 De que tristeza sofres tu, 
 Mudas de rosto tantas vezes,  
Mas não morres em nenhum... 
 Um dia eu hei-de repatriar-te, 
 Para um sitio qualquer,  
Só para não ver nenhuma lágrima,  
No rosto de uma mulher... 
 
São elas que mais te choram, 
Sabe lá Deus o porquê,  
Talvez seja, porque amam, 
Aquilo que mais ninguém vê... 

- § - 

   Muito lhe aturdia os pensamentos de poesia ao lusco-fusco da alvorada, onde a mente sacia a costumeira fome de palavras, mas ela não tem, nem lhe apetece falar com alguém. 
  Enquanto formulava as suas questões, vinha na sua direção 3 crianças em algazarra. Ao ouvir os primeiros gritos das crianças, permitiu-se romper em pranto. Soluçava pelo seu filho Nabil, pelo seu marido Beni, pelos beijos maternos, pelas bonecas que adornavam o quarto infantil, pelos dias de simplicidade que findaram sem aviso. Soluçava por gradualmente permitir perder quem realmente era. Ela, que sempre encarara o movimento das calçadas da sua cidade de cor de madeira, a multidão aglomerada como uma reunião de almas distintas, de histórias variadas e únicas.  
   Deu uns passo tétricos à volta do convés, sem dar-se conta do que se passava à sua volta – e sem se perceber a si mesma. Era apenas a superfície da ferida amortecida na dor que insistia em ignorar e que de repente despoletara.  
   Os pequenos cuja balbúrdia desencadeara o pranto passavam agora diante dos seus olhos embaçados. Uma das crianças, mais impressionada pelo convulsivo subir e descer dos seus ombros do que pela torrente de lágrimas que pingava na roupa, aproximou-se com curiosidade. Ela, sobressaltada ao toque tímido no seu braço, com dificuldade segurou o choro, conteve-se e esboçou um sorriso que não mostrava os dentes. A criança, sentindo-se saudada e tomando aquilo como encorajamento, abraçou-a. O susto provocado pela ação espontânea, sem precedentes ou explicação que não fosse o altruísmo infantil não a permitiu desenvencilhar-se dos bracinhos em torno de seu pescoço. Antes que pudesse reagir, a pequenina figura juntara-se novamente aos outros 2 meninos, brincando e correndo.  
    Aquilo era parte do que vinha perdendo. O contato com os outros, o afeto, o toque humano. 
- § - 
     Já lá iam oito dias no mar, o cheiro era nauseabundo, uma mistura de odores; suor, fezes, doença e morte. Encontravam-se à deriva sem água e sem qualquer tipo de alimento. 
   Zaidi Hammel abre a caixa e acaricia as fotos, os postais e os livros, trazendo à mente as boas passagens da sua vida que ama com o mesmo ardor do trovador que ama as liras com a mesma doçura com que o seu Nabil amava a mãe. Liberta o pensamento balbuciando em voz baixa:  - Se ao menos pudesse mostrar o que tenho a oferecer, o romance que há em mim, os versos que posso melhorar! Se ao menos pudesse encontrar n’alguma ocasião uma alma irmã à minha para ver comigo o horror do que parece belo a beleza no que há de mais feio! Todo o amor, a esperança, a revolta silenciosa, a sede de não sei o quê, a dor e o sofrimento destes e de tantos seres que sofrem enquanto o mundo parece dormir tranquilo ao ofuscante brilho da tarde. Eu, Zaidi Hammel, mulher, mãe, poetisa, aqui deixo ao mundo dos indiferentes, este meu poema, que exalta o desespero dos filhos da Argélia.
 A morte predomina na areia do deserto,  
Perseguindo quem foge por terra e mar. 
Nem os que estão longe ou perto,  
Param a força do mal a devastar.  
 Como pode o aroma da indiferença,  
 Perfumar o sono dos povos em cada dia? 
 Poetando espalharei a minha dor….. 
 Suplicando que acabem com a tirania.  
Em negra tinta, escrevo este horror!  
O Sol se põe por detrás dos restos 
Corpos estirados, lívidos, marcados 
Sujos desconfigurados e infestos  
Trazem o vazio dos gemidos silenciados. 
Calaram-se as vozes e os protestos, 
Os gritos não foram ouvidos, 
Os prantos maternos, apenas ignorados. 
Jazem ali os sonhos interrompidos, 
Dentro de flácidos organismos aglomerados. 
Povos acendam a fornalha da indignação 
Lume que acalenta as esperanças decepadas 
Que a solidariedade inunda o coração  
Dos que resistem em almas atormentadas. 
Estes filhos da Argélia já não podem ser atendidos 
 Nem gritar, nem implorar por ajuda  
Os lábios selados imoveis e doloridos  
Ainda em uníssono suplicam em sua alma muda  
Que não façam das tragédias eventos esquecidos. 
   -Meu coração se enleva ao vago pensamento das bandeiras que imagino levantar, dos ideais nos quais acredito, das histórias que finjo tecer, do futuro que encontrará solução no pretérito e do pretérito que invejará o futuro. Grito à igualdade de minhas irmãs e de todas as mulheres argelinas, à liberdade dos que querem pensar, à mudança dos que têm o estômago vazio.  
 Mas a voz de Zaidi Hammel, não ecoa, esmaece pelas paredes do imaginário em duas lágrimas de poesia que rolam livres nas suas faces! Num espasmo de liberdade a sua alma sonhadora acabara a luta e partira. 
- § - 
   O barco foi encontrado cerca das 8h00 a 60 milhas da costa da Líbia, a guarda costeira Italiana alertada para o sucedido, procedeu ao salvamento dos poucos sobreviventes e à recolha dos corpos daqueles que não sobreviveram. Entre eles figurava o da Zaidi Hammel segurava uma caixa que continha; fotos, postais, dois livros e um caderno apenas com uma folha escrita. A folha com um grito de desespero expresso na letra trémula de um poema “Filhos da Argélia”. 


João Murty
( a sair num próximo livro)

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