Dois Tempos e Duas Janelas- Rita Mourão


    Da janela do meu apartamento observo a rua. É domingo e a visão é magnífica. O sol, majestoso, despede-se do seu reinado. O momento pede uma profunda reflexão e os grandes deuses do amor parecem comprometidos com o paradisíaco início da noite. Vários casais vão se levantando dos bancos da pracinha para se dirigirem a um cinema, em frente à minha janela. Embalados por emoções fortes, buscam assistir a um bom filme - penso. Na praça, quase solitária, um casal de mãos dadas degusta as últimas gotas de um vinho afrodisíaco. A noite aprofunda sua caminhada, as pessoas vão se dispersando e o silêncio predomina. Apenas os dois enamorados continuam ali, e, presos aos estímulos buscados, deixam se conduzir pelo comando de Eros. 
    Ao longe um violão derrama no ar uma canção melancólica. Um gato mia no telhado úmido à espera da companheira. Existe no ar uma cumplicidade mágica e o casal do banco alça um profundo voo ao paraíso sonhado. 
    Na rua já deserta, apenas um guarda se movimenta. Para apreciar melhor àquela cena de amor, ele se esconde por trás de um frondoso manacá e assiste aos dois românticos jovens que liberam desejos e fantasias. Paralelamente uma algazarra felina desencadeia a iniciação de um ato, enquanto a noite, testemunha ocular da sensualidade do momento, vê sua tranquilidade cortada por dois tiros agudos, mortais. E do telhado rolam dois gatos, interrompendo abruptamente o ciclo natural da vida. Agora, no asfalto manchado de sangue, estão dois gatos sem gozo, dois gatos fora dos gatos, vencidos pela desarmonia brutal da morte. Lembrei-me de um poema de Drummond: “Chega um tempo em que não se diz mais meu Deus, tempo de depuração, tempo em que não se diz mais meu amor, porque o amor resultou inútil.” Fora inútil a espera, fora inútil o encontro, e inútil fora a vitalidade dos gatos. Foi longo o tempo por mim percorrido. Chego até minha infância, solta pelos campos da fazenda em que cresci e revivo outra cena de amor entre gatos, no entanto com um final feliz. 
    Eram altas horas da noite e todos dormiam, enquanto o casal se amava com miados agudos e sensuais. 
    Levantei-me às escondidas, (é claro) e pela fresta da janela do casarão vi os dois amantes na varanda consumando seus desejos felinos. Em seguida eles se afastaram molengamente, tomados por aquela frouxidão aconchegante que precede ao ato sexual. Fiquei perplexa. Era a primeira vez que eu presenciava uma cena de amor. Naquele momento percebi a grandeza de Deus perpetuando a vida e senti em mim as primeiras comichões de um corpo que me fazia mulher. 
    As duas cenas se confrontam e exaltam as minhas emoções. Uma me iniciando para a beleza da vida e a outra me jogando de encontro à cruel realidade. São dois tempos, duas janelas com dois finais antagônicos. E uma sensação de desamparo se apodera dos meus sentimentos.
    Remoída ainda por uma tristeza grande, volto à rua, que num silêncio profundo mostra- se solidária as minhas conjecturas. Fecho a janela e em mim me enrosco tentando esquecer aquela agressão brutal. Lá fora a noite segue seu curso, sem remorsos, levando com ela os encantos e desencantos desse domingo que registro nas páginas da minha memória. E a vida continua num constante duelo com a felicidade! Fim.


Crônica de Rita Mourão 
Primeira Antologia Ponto & Vírgula - Pág. 105 
Editora: PerSe/2012 
 Coordenação: Irene Coimbra



Comentários