Retrato- Jerônimo Baía



Pintar o rosto de Márcia
    Com tal primor determino,
    Que seja logo seu rosto
    Pela pinta conhecido.
Anda doudo de prazer
    Seu cabelo por tão lindo,
    Pois mal lhe vai uma onda,
    Quando outra já lhe tem vindo.
Sua testa com seus arcos
    Do Turco Império castigo
    Vencido tem Solimão,
    Meias Luas tem vencido.
Dormidos seus olhos são,
    Porém Planetas tão ricos
    Nunca já foram sonhados,
    Bem que sempre são dormidos.
A dormir creio se lançam
    Por ter de mortais, e vivos
    Tão boa fama cobrado,
    Nome tão grande adquirido.
Entre seus raios se mostra
    O grande nariz bornido,
    Por final que entre seus raios
    Prova o nariz de aquilino.
Nas taças de suas faces
    Feitas do metal mais limpo,
    Como certos Reverendos,
    Mistura o branco co’tinto.
As perlas dos dentes alvos,
    Os rubins dos beiços finos
    Tem desdentado o marfim,
    E a cor mais viva comido.
O passadiço da voz
    Nem é neve, nem é vidro,
    Nem mármore, nem marfim,
    Nem cristal, mas passadiço.
Na maior força de Julho
    Creio que treme de frio,
    Pois tem como neve as mãos
    E os pés como neve frios.
Que nelas há dous contrários
    Os meus olhos mo têm dito,
    Pois sendo uma fermosura
    São mais pequenas que os chispos.
No maior rigor do Inverno,
    Na maior calma de Estio,
    Nem tem frio, nem tem calma,
    Nem tem calma, nem tem frio.
Porque de Inverno, e Verão
    Sempre Primavera há sido,
    Pois sempre veste de Abril,
    E de Maio traz vestido.
Este é de Márcia o retrato,
    E dirá quem o tem visto,
    Que com ela o seu retrato
    Se parece todo escrito.
Mas se em cousa alguma erro
    Das que até’qui tenho dito,
    À vista do tal retrato
    Me retrato, e me desdigo.

Frei Jerônimo Baía, in 'Fénix

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