CENA DE RUA (*)Ely Vieitez Lisboa



E de repente, naquela movimentada esquina do centro, a cena inesperada. Ao redor, curiosos (de onde eles brotam?). No canto, o nordestino encardido, esquelético, pernas retorcidas. Ao seu lado, uma cadelinha com as tetas túrgidas de leite, mostrando cria recente. Em uma pequena caixa, os dois filhotinhos à venda, tão minúsculos, tão indefesos, tão cãezinhos. Filhote sempre comove (até o dos homens), mas os cães! Eles tateiam o vazio, com suas patinhas minúsculas, boquinhas róseas abertas, procurando possíveis maminhas da mãe ali perto. O vendedor não tem idade, traz na face um mapa de rugas com os caminhos do sofrimento. 
As crianças param (todas! Crianças têm olhos mágicos, elas veem além; adultos são criaturas que vão ficando cegas para a sensibilidade do mundo). Uma meninazinha ruiva pega, com carinho, um filhote, aconchega-o ao rosto, como um tesouro. Seus olhos brilham, a boca pede. Ela é o exemplo redivivo da personagem lispectoriana, no conto “Tentação”. A vida imita a arte ou vice-versa? Parafraseando Clarice Lispector: o que fazer de uma menina ruiva, sob o sol da manhã, desejando, desesperadamente, um cachorrinho? O animalzinho era a “sua outra metade neste mundo”, desejo vivo, vontade explicita, inteira. Os pais, lúcidos e cegos, não querem. Vem-me à cabeça o trecho do conto virado realidade: “Entre tantos seres que estão prontos para se tornarem donos de outro ser, lá estava a menina que viera ao mundo para ter aquele cachorro... A menina, espantada com o acontecimento, ainda com o cãozinho nas mãos, é chamada a ir embora para a sua vida sem o animalzinho. E ela sai sonâmbula, confusa, olhos marejados, sem entender por que os sonhos não se realizam. 
Misturam-se, na minha cabeça, sensações sentidas. Eu já vivera aquela cena; eu já sentira na alma a dor e a revolta da meninazinha. O sonho desfeito, o desejo não realizado, a sensação de felicidade sentida, tudo se arquivou para sempre na memória, transubstanciando-se no próprio Eu.
Saio dali melancólica; o céu está menos azul e nem percebo a brisa, que tenta me consolar. Na cabeça (ou no coração?) conclusões amargas: fatos mostram que a vida é mais um negar, não pode, não deve, não é hora. O coração jamais aprenderá a dura lição das concessões. A vida é regida pela lógica, pela adequação, não pode ser inconsequente. Pensamentos são como ervas daninhas, alastram-se. Acho tudo muito amargo, aquela meninazinha aprender, tão cedo, a fragilidade do querer humano: nossos desejos são etéreos, imponderáveis e, quase sempre, passivos. Eles não têm a magia de se tornarem realidade. E a beleza, a poesia, a felicidade, tudo muito difícil de se conquistar. 
Isto são coisas para se pensar em manhã azul? A culpa é dos cachorrinhos. Enxoto a filosofia barata que me anuvia o coração e mergulho no dia a dia das obrigações corriqueiras. A realidade é explícita como um tapa e detesta fantasias. Uma última conclusão, ressabiada, encolhe-se no meu íntimo: Devia ser proibido pensar. E sonhar.


Ely Vieitez Lisboa


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