DA CRUZ E DOS ESPINHOS (*)Ely Vieitez Lisboa


Filosofias e religiões tentam explicar a lógica dos acontecimentos e da vida. Há uma relação de causa e consequência, ou fala-se em pagamento, dívida, aperfeiçoamento, aprendizagem. É um raciocínio meio simplista e ingênuo: se alguém sofre é porque tem que pagar alguma dívida, senão Deus seria injusto e isto não se admite em um ser perfeito, bom, onisciente e sábio. Tudo são hipóteses. Enquanto isto, pela vida, arte de ver e rever, como disse Drummond, as coisas acontecem e têm um certo ar de acaso, loteria, sorteio, fatalismo. Alguns se divertem, carga leve nas costas, alienação completa, consciência larga. Outros, exigentes com eles mesmos, maltratam-se, cobram-se, vivem em eterna luta com seu duplo, como se cumprissem contrato cheio de cláusulas e itens. A desgraça, as tragédias, os alçapões da vida não aprisionam todos; há os eleitos, os escolhidos, que escapam sempre por certo tempo, outros são encurralados no estranho e macabro jogo da roleta russa. 
Pessoas há que parecem imunes ao sofrimento: passam borboleteando pela vida, automatizam-se, não percebem dores que as rodeiam. São criaturas denotativas, que só sabem ler em primeiro plano. Há também os dramas reais, concretos, brutais, as perdas, as doenças fatais e trágicas, as mortes repentinas. Como conviver com tudo isto? Como aceitar que caiam justamente sobre nós? Quando tais coisas acontecem, surge a revolta, a mágoa (contra quem?), morre-se mil vezes, dilaceram-se as carnes, fragiliza o espírito. O sofredor torna-se um morto vivo, desativado, inerme, fulminado pelos pensamentos amargos e pessimistas, a vida veste-se de negro. O tempo, no entanto, é mágico, os acontecimentos são cíclicos e o sofrimento também. O coração regenera-se, a alma floresce, a vida renasce. E toda desgraça, vista em outra perspectiva, de longe, torna-se mais amena, menos trágica. Rasga-se o sorriso, de novo, na face, e um dia o ex-sofredor se pega sonhando novamente. É a ressurreição.
É esta enorme capacidade de ressurgir das próprias cinzas, o mágico poder de ser Lázaro redivivo, que torna o homem um ser especial. Leva-o a desconfiar que Deus sabe o que faz, conhece oniscientemente a capacidade humana de sofrimento, o tamanho das costas de cada um, de acordo com o peso da cruz e o pontiagudo dos espinhos. Não é impressão, mas realidade. As pessoas mais espiritualizadas, benévolas, generosas, recebem, em geral, missões mais árduas, golpes mais rudes, dores mais contundentes. Os bons são fortes e resolutos, a fragilidade não habita em suas almas. É como se Deus, pai boníssimo, mas clarividente e justo, dissesse: ¨Toma, a dor é tua, tu és bastante forte para suportá-la. Eu te dou a cruz do tamanho das tuas costas¨. Deus conhece seu gado, é Pastor de suas ovelhas. Ele lançaria uma frágil ovelha a um lobo voraz? Não. Ele a faz forte bastante, antes de enfrentar o lobo. 
Tudo isto a filosofia não ensina. A vida sim. Tais perquirições têm preocupado muitas mentes que se abismam diante dos pretensos absurdos da vida.

Ely Vieitez Lisboa



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