Última chance com incêndios- Perce Polegatto



    As crianças que se perseguiam, de risos e vozes que eu assimilava como a distância, passaram entre mim e as chamas, interrompendo meu estado de fixação involuntária. Que era isso? Uma maneira de concentrar-me? Distrair-me?
    Essa noite trazia algo de abandono. Meus olhos haviam perdido os contornos da fogueira em movimento, a nitidez das fagulhas que se desgarravam, enquanto eu aceitava ser absorvido pelo cerne do que me consumia longamente até o coração do fogo. Não mais assistia ao espetáculo das centelhas que as chamas lançavam ao céu, que o vento punha a dispersar na noite sobre todos nós, eu e os que festejavam.
    Era verdade que, ontem mesmo, eu me encontrava – e me perdia – revendo o álbum pela última vez? O que buscava ali, se já não trabalhava esperanças? Acreditava que, no último momento, num relance quase fantástico, uma faísca de passado pudesse atiçar a memória ao encontro de uma nova pista. Uma suposição, que fosse. Uma frincha ou um fio de luz que me desse compreender, finalmente. Pouco que fosse. Algo que fosse. Eu próprio me concedera essa chance, e hoje sei: há algo indefinido em meu passado. Dentro do que sou, o tempo seguiu viagem sem que eu pudesse chegar ao centro de mim mesmo. Gostaria de poder avançar por essa bruma como portando um archote que a dispersasse, de um fogo especial que a abrisse a meus olhos nublados. Que são esses rostos sorrindo ou apenas posando envaidecidos? Por que se fazem outros ao fixarem a lente que busca registrá-los? Que máscaras são essas, se não posso arranhá-las com as unhas e encontrar por baixo uma verdade qualquer? Gostaria de saber por que fui enganado. Gostaria de saber por que mentiam. Gostaria fosse um nome, uma data, um fato que houvesse demarcado a bifurcação de nossos destinos. Fosse algo que... E como se não mais soubesse de mim: sempre fui ambicioso, arrojado. Não me bastam indícios. Gostaria de saber toda a verdade. Tudo. Agora que todos estão mortos.
    Então era como se um incêndio vivesse. Então era como se o tempo mais amplo, as fotos, os dias de todos, coubesse em meu tempo de arder sendo um. Então era como se, muito longe, me chamassem pelo nome.
    Crianças tornam a separar-me das chamas, tenho meus olhos de volta. Ela se aproxima, mão esquerda no chapéu, contra o vento. Traz doces, um sorriso.
    “Gosta destes?”
    Tranças fazem dela uma menina, posso vê-la correndo com as outras. Sabe que estou ali há muito tempo. Olha-me de frente, espera que eu sorria.
    “Vamos. Você prometeu livrar-se do passado.”
    Vejo-me nu, consciente de minha aventura e de minha solidão, atirando o archote ao centro do fogo, perdendo-o para sempre. A fogueira declina aos poucos em seu poder, calor e ruído. Uma das vigas que a sustentam cai pesadamente, reavivando por um momento o fogo, com isso despertando uma revolução de centelhas que fogem para o céu aberto da noite. As crianças se perseguem. Há os que brindam, os que dançam de braços dados à roda do fogo.

Da coletânea “Lisette Maris em seu endereço de inverno” 

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