Braile contra a luz- Perce Polegatto

 

    Os professores repreendiam-me, estranhavam que tanto eu pressionasse o lápis sobre o papel. Mais tarde, a caneta. Nunca soube escrever de outra maneira, e não me desenvolvi. O adolescente não podia evitar que os tipos datilografados perfurassem o papel – e os acentos, aspas, vírgulas e interrogações remetiam ao braile, não sem alguma alusão oportuna, minhas dúvidas e escuridão. Não me ocorre, mesmo hoje, a razão pela qual necessito firmar minha escrita, meu código de forças, minha ativa mão, meus dínamos em meio a um mundo insólito e perpassado pela indiferença, por mais que eu avance ferindo os papéis. O texto é meu objeto, meu homem de argila. E nenhum papel foi jamais suficiente para mim.
    O registro, resto de uma verdade que me atraísse, não era senão a sobra, a perda. No último degrau do pátio, caderno sobre os joelhos, sozinho ante o muro em cuja base os brotos de hera buscam firmar-se, o menino intui que as palavras se transformam, que se modificam conforme os olhos de quem as considera, que não podem ser transcritas. Que viajam. E se deslocam entre os dias e os gestos, e se dissolvem para germinar, e desaparecem como os antigos idiomas e os povos reciclados pela terra. Não existe o ponto-final, nós o inventamos. Para que a frase se detenha. E o texto não se confunda com o universo ou com a sombra.
    “Bom dia. Tão cedo no portão de casa?”
    “Bom dia. Que dia é hoje?”
    “Quarta-feira.”
    “E como se chama esta manhã?”
    A empregada ria de minhas perguntas, chamava-me bichinho complicado. Eu lhe perguntava o nome das coisas, ela aceitava a brincadeira. Bolsa, vestido. Dentes? Sorriso, que significa, ao mesmo tempo, dentes, lábios e manhã. A moça subia os degraus do alpendre, deixava meu campo de visão, levando com ela seu próprio nome, seus sonhos e os nomes de seus sonhos.
    Quando eu despertava, pensava em meu nome como reafirmando que ainda era o mesmo, após uma noite inteira de sono. Admirava-me que as palavras estivessem presas às coisas, e não caíssem, como o ramo seco de uma árvore ou a casca de um ferimento, em vias de cicatrização. Que um vento forte não as embaralhasse, e essa árvore não passasse a se chamar poste ou cavalo. Um cão, menino. Uma casa, ratoeira. Um homem, pedra. Queria saber mais da porta de madeira cujas formas pareciam observar-me: que nome teriam cada uma daquelas nódoas, as estrias e os anéis concêntricos? Por pouco, suspeitava que, se descobrisse a palavra-chave, desvendaria o segredo da seiva ressecada em rugas, de sua gravidade e austeridade, do passado que não me revelavam as grandes árvores e a memória velada das florestas. Eu não tinha esse poder. Mas silenciava diante das portas, para alcançar ler o que cada uma trazia em seu próprio idioma, sua versão de fóssil.
    De pé, junto ao último degrau. O muro coberto pela hera é o mesmo muro? O que são as palavras? O nome dos mortos continua nas trevas? E eu, que há tanto me alimentava de perguntas e palavras, desejava saber agora onde estaria o texto final, o relevo em pedra, a inscrição no milenar sepulcro, que resumisse magicamente o que sempre eu buscara em vão, como quando acreditava poder encontrar-me com Deus e desvendar seu verdadeiro nome, a palavra que infinitamente lhe coubesse. Mas as palavras, como Deus, só existem em nossa imaginação, nossa invenção, nosso abismo. E meu homem de argila arrasta-se ainda na penumbra, na obscuridade, nos papéis insuficientes.
    Caderno sobre os joelhos, caneta acrescentando relevos ao papel ordinário. Sinal do intervalo. E os olhos, involuntariamente, dão com os brotos de hera por realizar-se, antes que o menino se levante e se misture à correria das crianças, rumo às salas de aula, onde os professores certamente haverão de estranhar que assim ele pressione a caneta sobre sua única chance.

Da coletânea “Lisette Maris em seu endereço de inverno”


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