Estudo com paredes Perce Polegatto

    


    Viu horrorizado que a machadinha empastada de sangue subia e descia em golpes sucessivos sobre seu peito. Pareceu-lhe uma infinidade de pancadas surdas, ainda que uma delas, apenas, pudesse abrir-lhe o tórax ou separar-lhe a cabeça do corpo, e ainda que o jovem empunhando a perigosa ferramenta, um moreno escuro, de físico débil, rosto de zigomas, bigode por vingar, costeletas desiguais e olhar traiçoeiro, não demonstrasse tanto vigor e habilidade. Deu-se por fim com o rosto coberto de sangue – e não só o plasma viscoso e morno, a morte o cegava. Viu que estava morto. Arrastado para junto da última parede. Tijolos e massa, o rapaz erguia à sua frente outra parede, um trabalho meticuloso, premeditado, e a última coisa que viu foi o muro recém-construído, tijolos à vista, de um ocre avermelhado, isolando o jardim de inverno.
    Era seu próprio grito. Sentado na cama, testa suada. Outra manhã de primavera. Percebeu os primeiros pássaros do dia, rumor de fundos e folhagens, ramas que floresciam junto à janela, sons, imagens pressentidas do que mal se poderia associar ao grave pesadelo. À espera de estranhos, uma ligeira lembrança e umas imagens cegas, feitas de suas joias, relógios e apólices, moveram-no talvez a preocupações involuntárias, medo. (O interfone, insistente: são eles.)
    Um homem velho, rico e hipertenso, não pode morar sozinho numa casa deste tamanho, resmunga enquanto desce as escadas. Pensa em voz alta, pragueja contra personagens da família. Passando pela entrada de serviço, olha de relance o material à espera de seu destino: sacos de cal e cimento, umas barras de ferro, lajes e gesso, madeira e massa de rejunte, uma pilha de tijolos avermelhados recortada em pequenos degraus, o conjunto forjando um cenário obscuro em sua área lateral, o que na noite anterior ele havia sondado com passos silenciosos sob um clarão de caligem, que era a lanterna da lua, e à margem da relva de grilos.
    “Bom dia”, diz o negro grisalho.
    “Bom dia”, responde, abrindo o portão.
    “Meus serventes”, o mestre apontando os rapazes.
    “Bom dia, senhor.”
    “Bom dia...”
    Os jovens, um baixinho atarracado, musculoso, cabelos crespos, um albino sardento de andar indolente e um moreno claro, de físico débil, rosto de zigomas, bigode por vingar, costeletas desiguais e olhar traiçoeiro, trazem consigo uma cavadeira, uma pá, um carrinho de mão e, entre as ferramentas, a machadinha.

Da coletânea “Lisette Maris em seu endereço de inverno” 



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