Como a toda criança aparentemente sadia, o mar e os navios encantavam-me. Nunca tinha visto um, nem mar nem navio, fora dos livros ilustrados em que os descobria. Desde aquelas antigas embarcações egípcias, passando por caravelas enfunadas e vapores escurecidos, até encouraçados, em guerras mais recentes (até isso!), todos me pareciam belos.
Eu sabia muito bem que, em meu tempo, não mais se realizavam aventuras e expedições memoráveis, apenas o transporte de mercadorias, em viagens monótonas das quais evidentemente ninguém quer saber. Isso sem falar, mas vou falar assim mesmo, daqueles enfadonhos transatlânticos, os tais que levam turistas felizes, em cruzeiros financiados. Também para não falar, mas vou falar, dos passageiros que se divertem em restaurantes, cinemas de bordo, ou disputando algum jogo que, face ao permanente desafio que o mar abriga sob seus pés, na certa não passa de uma bobagem sem imaginação.
Ocorre-me que o velho Giuseppe, agourento pioneiro de nossa família no Novo Mundo, mencionava o mecanismo de esteiras que servia a repelir baleias brincalhonas e fatais do vapor que o trouxera. Em noites de lua, guinchos distantes de algum grupo de cetáceos atraíam curiosos ao convés. Os mais imaginativos (emigrantes, não cetáceos) preferiam acreditar em sereias melancólicas. Lembro-me de cada palavra, com seus mesmos olhos de sonho. Ele morreu centenário e lúcido, quando eu ainda era um menino.
À noite, eu fechava os olhos e via as caravelas, as tempestades, os emigrantes, as baleias. Imaginava meu bisavô no convés do vapor e o lamento das sereias a distância. Tudo isso gerava em mim um estado de fascínio que, mais dia, menos dia, haveria de levar-me a alguma atitude que me aproximasse de todas essas coisas de alguma forma.
Decidi entrar para a Marinha. Já era um homem experiente, resoluto e dono de meu próprio nariz. Tinha dezesseis anos.
A família ficou sabendo.
“Marinha?!”
Minha mãe se pôs a chorar. Disseram-me que a vida de um marinheiro, como a de qualquer militar, não passava de uma rotina cansativa, disciplinada e sem sentido, daí se tornarem todos uns oficiais infelizes e frustrados. Mas eu já era homem feito e não acreditava mais neles, nos meus familiares, nem nos parentes próximos nem nos distantes, que eram todos, a meu ver, muito acomodados.
“Marujos têm de carregar sacos e limpar porões.”
Nada me desanimava. Faria qualquer sacrifício para viajar em um navio. Até tornar-me militar. Até enfrentar aguaceiros tropicais. Ou conviver com as solidões polares, em noites azuis e terríveis. Ou... – enfim, entenda-se, qualquer coisa.
“Sua miopia é muito acentuada”, foi o que ouvi após o exame, no órgão de alistamento. “Você não deve enxergar nada direito.”
Eu sabia que sim. Eu sabia que não – que não enxergava nada direito. E tive de aceitar o naufrágio de minhas ilusões. Dezesseis anos, rejeitado pela Marinha. Trágico, sem dúvida. Voltei para casa desconsolado.
“Não sirvo para carregar sacos.”
Cresci, tornei-me um funcionário ocupado, imune ao fascínio. Agora sim, era um homem – e sonhava com as férias.
Colegas de excursão, com quem dividia os alojamentos de nossa colônia no litoral, recusaram-se a acompanhar-me até a cidade vizinha, mais movimentada e atraente, na noite de sábado. Ninguém queria deixar o salão de jogos, e alguns deles calaram-me com gestos para que não mais os importunasse, o que já ia passando dos limites, por causa de minha ingênua insistência.
No ônibus, fui informado de que seria mais conveniente atravessar o canal com a catraia.
“Catraia?!”
Catraia mesmo, espécie de vagão flutuante, uma embarcação suja e barata, de cujo motor infernal me recordo até hoje. Não havia lugar para sentar, e eu me encostei, dobrando uma perna como apoio, a uma viga de madeira. Fiquei olhando a noite escura, a pobre paisagem: as luzes que se afastavam em terra, conforme a catraia desenhava, sobre as águas, suas mansas curvas. Após uma dessas curvas, a margem mal iluminada desapareceu de meu campo de visão, dando lugar ao bloco negro que eram o céu e o mar desse sábado. Fiquei triste com tudo aquilo. Muito rapidamente triste. Eu estava sozinho. Percebi que na verdade pouco me interessava o movimento da cidade vizinha e, aos poucos, fui perdendo a vontade de qualquer coisa. Também me dava conta de que não reagia à escuridão sem horizontes de minha fase adulta: apenas esperava.
Quando, por fim, deu-se a última curva do largo canal, deparei com um quadro inesquecível. A catraia dirigia-se ao cais do porto, onde navios de verdade alinhavam-se ao longo das plataformas, assumindo proporções monumentais, conforme a nossa proximidade. Silenciosos, os cargueiros soltavam-me âncoras de um sentimento há muito submerso e que então tornava à tona. A minúscula catraia percorria a extensão da margem, ladeando as embarcações, passando uma após outra, para que eu lhes observasse cada detalhe, desde os matizes limosos em seus paredões de aço até as pequenas luzes pontilhando as torres de minha perspectiva inevitável. Eu era um menino, um pequeno príncipe passando em revista as tropas imperiais. Imponentes, adormecidos sobre as águas escuras, os cargueiros pareciam feitos para arrebatar-me. Imaginei que meu bisavô estivesse ali comigo – e ele parecia sorrir.
Era tarde quando voltei. Não esperava que os outros compreendessem as razões de meu encantamento, por isso guardei comigo todos os navios, todos os sonhos, tal como quando os punha sob o travesseiro, à hora da infância. Meus companheiros todos dormiam, enquanto eu recordava ainda uma vez as caravelas, os marujos, meu jovem bisavô e as sereias. No escuro, ouvindo as ondas que trovejavam com doçura na praia próxima, concluí, com estranha certeza, que certos sentimentos profundos costumam significar sempre mais do que nos parecem dizer. Que herdara de meu ancestral sonhador as visões apaixonadas que cercam o mar e os homens. E por mais que me desviassem caminhos em terra, não me poderiam impedir os olhos de menino antigo nem que dormissem comigo as imagens recentes desses gigantes de ferro e aço, silenciosos deuses encouraçados.
Da coletânea “Inconsistência dos retratos”
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