Sem adeus- Perce Polegatto

 

    O pai está lá, pálido. Foi um bom homem. Nem tanto. Mas nessas horas só vale a pena concordar com tudo. O pai, ele próprio, ironizava velórios assim. Leitor de almanaques, filosofava à sua maneira sobre tudo o que existe. Pegava-o sob a Lua: imagine, a mesma que aqueles egípcios viram há tanto tempo... Ele contemplava também, menino. Hoje pensa que ela continua aí, girando pesada, ao largo do nosso planeta. Quantos deuses e deusas foi a Lua antes que nos contassem que ela não passava de uma bola de sílica e cal, com crateras de impacto, desprovida até de atividade vulcânica, nada de vida, nem um micróbio, imagine. E era uma deusa.
    “Nosso pai nos deu os livros”, lembra o irmão. “Isso foi nosso.”
    Sim. É verdade. Com isso, matamos os deuses. Roubamos o fogo. Pagamos o preço. 
    E tudo isso, tragicamente, desembocando na repetição de ditos famosos que o pai tinha prazer em reciclar, sempre com alguma afetação enfática: “Só sei que nada sei!”. Referia-se a esses homens, autores de tais máximas, como os grandes. “Já diziam os grandes...”, “A obra dos grandes...” Os grandes, que haviam morrido antes dele. Os imortais. Os que morreram antes dele. “Só sei... (uma esperada pausa) que nada sei!”
    Oh, sim, que bela herança. Pregar às próximas gerações que nada sabe. Se ele nada sabe, como sabe que não sabe? Se não sabe nada, que autoridade de conhecimento pode ter sobre nós? O que pode nos ensinar? Espere, espere aí, quem você pensa que é? Você está se referindo aos grandes! Quem é você para contestá-los? Afinal, eles pensaram tanto. Eram filósofos. Imortais, sabia? E você, o que sabe? Filósofos, ouviu? Ouvi. Disseram que não sabiam nada. Não quero contradizer ninguém. Estou aqui para aplaudir, só isso.
    Não há entre nós um Demóstenes, como nos conta a história e a lenda, que obstruía a língua com pedrinhas, treinando assim para ser o futuro orador que seria, postando-se diante do mar, tentando falar mais alto do que o poderoso trovejar das ondas, para que um dia, retiradas as pedras da boca e longe das majestosas vagas, proclamasse seus grandes discursos, alcançando, influenciando, impressionando toda a gente na praça grega. O que temos são essas pedrinhas sob a língua. Não podemos gritar. O mar da tradição troveja suavemente sob nossa saliva. Temos todos, pedrinhas na boca. Podemos declamar poemas ou proclamar esperanças, ao gosto de todos. Mas temos de ser alinhados e contidos quando atinamos com alguma verdade. Não podemos insinuar essa verdade. Não podemos nos indignar com ela. Não podemos gritar.
    Até que ponto terá absorvido ou herdado tais sombras do próprio pai? Até que ponto lhe serviam (e o destruíam por dentro) os almanaques e as histórias de vida, tão exemplares? Não se trata de gritar, não desta vez. Precisa apenas de uma melhor resposta. Os tais grandes, os pensadores imortais, só contribuem com a chuva fina, mais nada. Não trazem o sol. Ou tudo de que se lembra cai nisso, nessas frases solenes que nada lhe acrescentam. É como se já soubesse daquilo tudo que diziam, mas não como um sinal de arrogância (sinceramente não), do que o pai prontamente o acusaria. Quem você pensa que é? Não sei ao certo. Por enquanto, estou aqui para ouvir. Estou aqui para aplaudir.
    “Penso (sempre uma pausa), logo existo!”, a memória traz a voz do pai. Como? Quem era esse outro, pai? Pensa, existe e daí? Uma árvore não pensa, e existe. Uma pedra não sonha, e permanece. O que você sabe para contestá-los? Quem você pensa que é? Não sei, não me importa responder quem sou, essa coisa de sempre. Ao menos, gostaria de ter tido coragem de lhe pedir que deixasse de lado esses grandes, esses grãos de areia, esses sábios que não são nós, que não nos conheceram, esses fantasmas de almanaques que até hoje nos assombram com sua luminosidade obscura. Quem você pensa que é? O que você pensa que sabe? Nada, desculpe. Não quero me defender, não quero mais pensar. Há um mar trovejando logo abaixo. Tenho pedras na língua. Estou aqui para aplaudir.

Do romance “Marcas de gentis predadores”


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