Um stone outra vez a caminho- Perce Polegatto



     Quando fui pela primeira vez por esse mesmo caminho, a saliva me afogava a garganta. Eu e a Joss Stone já tínhamos tudo combinado. Era a primeira vez que eu ia. Ela me disse depois que também respirava um pouco de medo. Mas isso não importa agora. Claro que isso não importa mais, porque já passou. Eu seguia em frente com os olhos estreitos, porque fazia um vento com ciscos. A saliva me afogava, me entupia a garganta, caso eu não tenha dito isso ainda. Como se fosse sufocar a qualquer momento, desmaiar enquanto andava, cair engasgado comigo mesmo. Um pouco era ansiedade, eu sei. Um pouco era um enorme desejo contido, imaginado, por causa dela, da voz dela, do corpinho dela, um pouco era eu não estar acostumado à felicidade. Isso foi em janeiro.
    Não sei explicar como, mas um e outro passo atravessando a rua às pressas, entre um e outro golpe de vento sujo, e dobrando a esquina perto de uma árvore triste, me fizeram lembrar de quando fugi de casa pela primeira vez. Eu tinha quatro anos e não era casado. Levara comigo meu caminhãozinho de madeira amarelo. Era o que eu tinha de mais importante – uma daquelas coisas que, à época, era dessas que-eu-mais-tinha. Fui resgatado a uns dois ou três quarteirões de nosso endereço junto ao bosque. Contaram que eu estava de péssimo humor. Claro que eu me lembro pouco disso, bem pouco. Mas lembro sim, curiosamente. Difusamente. Como em ondas de imagens em preto e branco, influência dos álbuns de fotografias talvez, porque a vida não era em preto e branco, por mais que os autores acomodados se utilizem dessas metáforas quase automáticas, previstas. Que tédio. Mas, de tudo aquilo, voltam sempre duas ou três imagens em uma exposição mais ou menos viva, uma historinha que se repete desde o início: os degraus de pedra do portãozinho de casa, a calçada de lajes velhas e sem graça, tudo cinza-claro, sem graça, tudo sem graça, eu disse, eu lembro, eu puxando meu caminhãozinho de madeira amarelo pela rua Carlos Gomes, dobrando a esquina proibida, não, não me lembro dessa parte, só da parte seguinte, lá em cima, no outro quarteirão, depois de todo o aclive acentuado da rua Tamandaré, que não sei como venci, não lembro como venci. Sei que até hoje essa parte da rua é ruim, trincada, assimétrica, desnivelada, raízes estourando lajotas, remendos por toda parte, enfim, irregularidades recorrentes que no fundo ninguém quer consertar de verdade. Não me lembro dessa parte, só da parte seguinte, eu dizia, então meu pai gigantesco, seu bigodinho fino, curvando-se para me pegar, com carinho, eu acho, parece que ele sorria um pouco, ou ria de mim, só que não tenho certeza. As impressões e memórias que não compreendo devem ser importantes, ou não estariam mais comigo. Lembro de estar ofegante – como posso me lembrar disso? Eu estava parado. De certa forma, vencido. Segurando a cordinha que puxava o caminhão amarelo.

Do romance “Projeto esvanecendo-se”

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