Chapéu de praia, óculos de sol...- Perce Polegatto

     Chapéu de praia, óculos de sol, cheiro de cremes, ombros livres, lábios dilatados, ela me sorria. Eu a beijava, rendido. Estreitava os olhos contra o horizonte grandioso, enorme, longe. Ninguém interrompe o mar, essa imensidão fremente. As coisas mudam. Parecem as mesmas. Vento vivo e aves marinhas. Nada interrompe o mar. Minha camiseta suada, fácil. Minha pele mal adaptada ao verão, sempre. Não posso com o sol. Faço isso pela Marjorie, ela tem razão em muitas coisas, eu sei, precisamos viajar, ver o mar, deixar nosso lugar dos outros dias todos. E eu pensava em como era privilegiado por ter a Marje comigo, uma mulher atraente, decidida, forte, que misteriosamente me desejava. Mas isso de ela ter razão ou não sobre certas coisas, algo que podemos dizer sobre todo mundo, não é motivo de... motivo para... Por que eu fiquei com ela? Uma mulher bonita. Rosto anguloso, sem um grama de gordura. Olhos de amor. Sorriso plano, exato, fixo, em seu limite. Quando vê um animalzinho ou uma criança pequena, torna a olhar para mim, sem olhos, óculos escuros cintilantes, de alguma forma poderosos. A garotinha passa bem à frente, passinhos hesitantes, pazinhas de areia, coisas em plástico verde. Olha, que fofa, que linda, não é demais? Sim, eu também acho. Sim, eu penso e digo que sim. Por que ela parece rígida, mesmo quando se rende à graça de certos momentos? É só uma impressão minha, acho. Horizonte e menos horizontes, limites laterais da praia, litorâneos. Sol e sofrimento. Eu não queria tê-la perdido numa note de chuva.
    Quando terá sido a primeira vez que alguém se impressionou com a beleza? Intermitência de gritinhos, risos, sorrisos carregados pela brisa. Somos cópias genéticas, modelos e padrões que se sucedem, um absurdo processo ancestral desenvolvido à nossa revelia, entre vastas eras geológicas, até falar por meus olhos, acompanhando a densa fatia de água pesada, cristalina, que despenca com estrondo ali à frente, a onda de número um trilhão. Nunca esquecer Neruda: o mar intratável, o custo do silêncio. Eu, sempre evitando o sol, um homem à sombra. A sombra de um homem à sombra.
    Agora, habitantes temporários de outro espaço eterno, depois de passearmos um pouco pela orla, descíamos à praia e seguíamos descalços pela faixa molhada de areia enquanto anoitecia. Tinha sido uma tarde de tempo desagradável e úmido, os barcos amarrados balançavam no limite do mar cinzento. Ondas suaves e precisas. Podiam servir de relógio. Acompanhando nossos passos iguais. Ao longo da praia, uma barra movediça guiando nossos limites. Durante o dia anterior, por causa de uma chuva rápida, mas de efeito estendido, o mar parecia diluído, como se flutuasse pelo céu, sem linha de horizonte à vista, turvo e cor de oliva, as ondas se arrastavam baixas e pareciam não querer quebrar sobre si mesmas. Só perto das rochas limítrofes, um arranjo pesado fechando a praia, é que elas ainda rebentavam com força, mesmo assim com certo cansaço, deixando um rastro efervescente na volta. No dia seguinte, senti uma sutil alteração na personalidade do mar: parecia propenso a gerar ondas menos inocentes, num resmungo incessante. Mas esses dias terminavam, e o oceano entardecendo em oliva nos convidava a uma última visita, uma última vista, um último voo em terra. Ar fresco, de cheiros orgânicos.
    Outra vez sob o sol. Uma pessoa a distância. Depois, não. Espaço aberto, fora de nós. E esse semelhante a distância, outro eu. A ponto de não mais se saber quem é. Tempo de essa pessoa estar lá, onde estava, extinto. Todos os povos. Cada pessoa, sua distância. História de ninguém. Distância a ponto de não se saber mais quem foi. De nunca mais existir. Não podemos com o sol. A Marjorie e eu. Nós dois aqui, fortes. Que distância é essa, que nos cobrirá de ondas? Olha, que linda, como ela anda, o jeitinho dela... Passa a garotinha, bem perto. Sim, é linda. Por que eu fiquei com a Marje? Quer uma filha hoje? Porque ela consegue sistematizar a vida, e isso me passa alguma segurança? Pode ser. Porque preciso dela, eu acho. Eu me perco fácil. Acusado de digressão, lembre-se. Você perdeu muito. Pode perder tudo.

Do romance “Projeto esvanecendo-se”


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