ENSAIO SOBRE POÉTICA- Fernando Pessoa

 Escrito para edificação e para a instrução dos pretensos poetas.

    Quando penso no número abundante de rapazes e no superabundante número de mulheres jovens no presente século, quando vejo a natural e consequente profusão de atracções mútuas, sempre que cogito no grande número de composições poéticas que dali emanam, sempre que o meu pensamento se debruça sobre a formação demente e caótica destas efusões, fico perfeitamente convencido que, se escrever um ensaio sobre a arte poética, estarei contribuindo grandemente para o bem público.
    Contudo, ao considerar a melhor e mais prática maneira de começar tão importante debate, concluí sensatamente que uma exposição directa das regras da poética era a maneira como eu devia apresentar o assunto ao leitor. Achei inútil e inapropriado referir-me aos antigos críticos de arte, dado que os críticos modernos são mais agradáveis de citar e disseram tudo o que há a dizer sobre o assunto, e mesmo um pouco mais — o que é da sua autoria, onde são originais. Ao pôr de parte os críticos da antiguidade tenho duas boas razões, a segunda das quais é que, mesmo que soubesse alguma coisa sobre eles, não gostaria de impingir a minha ciência escolar ao leitor. Começo então a minha exposição.
    Primeiro penso que seria oportuno chamar a atenção do pretenso poeta para um facto que não é habitualmente considerado e que ainda é digno de consideração. Espero escapar ao ridículo universal ao afirmar que, teoricamente, a poesia é susceptível de escansão. Gostaria, porém, que ficasse claro que concordo com o Sr. A. B. quando afirma que a escansão estrita não é de todo necessária para o sucesso e mesmo para o mérito de uma composição poética. E creio não parecer excessivamente pedante se procurar no armazém do Tempo, para citar como autoridade, algumas das obras de um certo William Shakespeare ou Shakspere que viveu há alguns séculos e que desfrutava de alguma reputação como dramaturgo. Esta pessoa tinha por hábito cortar, ou acrescentar, uma ou mais sílabas nos versos das suas numerosas produções, e se era inteiramente permitido naquela época de beleza quebrar as regras do bom senso artístico e imitar algum obscuro escriba, ousarei recomendar ao principiante o prazer desta liberdade poética. Não que o aconselhe a acrescentar quaisquer sílabas aos seus versos, mas a subtracção de algumas é muitas vezes conveniente e desejável. Posso ainda recomendar que, por esta mesma regra limitativa, tendo o jovem poeta cortado algumas sílabas ao seu poema, prossiga com o mesmo método e corte as restantes sílabas, embora possa não alcançar qualquer espécie de popularidade, terá todavia revelado um extraordinário senso-comum poético.
    Posso também explicar aqui que o meu método para a formação de regras que estou a expor é o melhor. Vejo e penso nos escritos dos poetas modernos, e previno o leitor para fazer como eu fiz. Porém, se recomendo ao pretenso poeta que não se preocupe, na prática, com a escansão, é porque descobri ser isto uma regra e uma condição nos poemas de hoje. Nada como a mais cuidadosa consideração e o mais honesto apego a um modelo para ser usado por um aprendiz na arte. Em todos os casos, podem confiar em mim para vos dar o melhor método e as melhores regras.
    Abordo o assunto da rima com um grande receio em vez de proferir algumas observações que poderiam parecer demasiado ortodoxas, quebrarei rudemente uma das regras mais obrigatórias da poesia moderna. Sou forçado a concordar com o Sr. C. D. quando diz que o ritmo não deve ser muito evidente em qualquer poema, embora este possa ser chamado rimado e os numerosos poetas modernos que exemplificam este preceito têm a minha inteira aprovação. A poesia devia encorajar o pensamento e apelar para a reflexão: nada melhor que o prazer do crítico quando, depois de um minuto de dissecação da composição, percebe, primeiro, que é poesia e não prosa, segundo, após um grande esforço, após um profundo exame, que é rimado e não branco.
    Tais belezas poéticas, serão, no entanto, visíveis só ao crítico experimentado, porque o homem de gosto poético comum é muitas vezes, quando chamado a criticar um poema, colocado numa situação indesejável. Por exemplo, há cerca de uma semana, um amigo meu pediu-me a opinião sobre um poema que tinha escrito. Entregou-me um papel. Eu fiz algumas e vãs tentativas para compreender a efusão, mas rapidamente as corrigi invertendo a posição do papel para conseguir captar um melhor sentido. Felizmente como me fora antecipadamente dito que o papel que estava diante de mim tinha um poema, comecei imediatamente, sem qualquer precaução, a tecer copiosos elogios à excelência do verso branco. Corado de indignação, o meu amigo disse que a sua composição era rimada, e, além disso, que se tratava dos chamados versos spenserianos. Não muito convencido pela sua impúdica invenção de um nome (como se Spencer alguma vez tivesse escrito poesia!), continuei a examinar a composição que tinha na frente mas, não conseguindo sequer aproximar-me do sentido, limitei-me a elogiá-la, comentando particularmente a originalidade de tratamento. Ao devolver o papel ao meu amigo, este passou-lhe uma vista de olhos para me mostrar algo de especial, o seu rosto nublou-se e pareceu intrigado.
    «Raios», disse ele, «dei-lhe o papel errado. Isto é a conta do meu alfaiate!»
Que este triste episódio sirva de lição ao crítico de poesia.
Nessa destruição do sentimento poético, o verso branco, só tocarei ao de leve; mas como vários amigos meus me têm repetidamente pedido a fórmula ou receita para a sua produção, dou neste momento a conhecer as directivas àqueles dos meus leitores que tiveram a coragem de me acompanhar até aqui. Na verdade, no campo da poesia, não há nada mais fácil do que produzir verso branco.
    A primeira coisa a fazer é arranjar tinta, papel e uma caneta; e então escrever normalmente, em linguagem corrente tal como se fala (o que tecnicamente se chama prosa) o que se quer dizer; ou, se for esperto, o que estiver a pensar. O passo seguinte é lançar mão de uma régua graduada em polegadas ou centímetros, e marcar, com um traço, a efusão da sua prosa, cortando quatro polegadas ou dez centímetros no comprimento: eis as linhas da sua composição em verso branco. No caso de a linha não ficar certa, uns «Alases», ou «Ohs» ou «Ahs», ou uma introdução de invocação às Musas preencherão o espaço exigido. Esta é a receita moderna. Claro que não sei directamente se este é o método que os poetas modernos utilizam. Mas, ao examinar os seus poemas, descobri que a evidência interna é conclusiva, apontando sempre para tal método de composição.
    Quanto à escansão do verso branco, não se preocupe com isso; primeiro, porque seja de que espécie for, os críticos vão encontrar nele os erros mais ultrajantes; mas, se com o tempo se tornar famoso, os mesmos senhores justificarão tudo o que fizer; e ficará surpreendido com as coisas que simbolizou, insinuou, quis dizer.
    Por último, volto a insistir com o leitor que, nesta era do automóvel e da arte pela arte, não há qualquer restrição ao comprimento da linha em poesia. Podem-se escrever linhas de duas, três, cinco, dez, vinte, trinta sílabas ou mais que não tem importância nenhuma; só quando as linhas de um poema contêm mais do que um certo número de sílabas, essa composição é geralmente conhecida por prosa. Esta dificuldade de se saber qual é o número de sílabas que estabelece o limite entre poesia e prosa faz com que seja modernamente impossível distinguir o que é uma e o que é a outra. A distinção interna é, claro está, impossível. Depois de algum estudo, descobri que pode ser geralmente considerada poesia quando cada linha começa com letra maiúscula. Se o leitor conseguir descobrir outra diferença, ficaria muito grato que ma desse a conhecer.



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